Título: Lula é mesquinho ao renegar o que houve antes
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Fonte: O Globo, 18/06/2011, O País, p. 16
O GLOBO: Do que o senhor se arrepende nestes 80 anos? FERNANDO HENRIQUE: Ah, aí você vai passar a tarde toda aqui (risos).
Do que mais se orgulha? FH: Vou dizer uma coisa que pode parecer clichê. É da minha família. Eu tenho um apoio tão forte, tinha da Ruth e tenho dos meus filhos. Em todos os eventos da minha vida, o que não é fácil, é inacreditável. Meus filhos me ligam incessantemente e vêm aqui, se preocupam. O que me dá possibilidade de viver com independência e vigor é que tenho apoio brutal da minha família e dos amigos de muito tempo. Isso é necessário.
E o arrependimento? FH: O arrependimento? Olha, se for na política... O resto eu não posso nem falar, porque tenho tantos... (Mas na política) é aquilo que eu disse, é conveniente ter a noção de que não dá para mudar tudo de repente. Acho que forcei demais para mudar a Previdência, e isso me custou muito caro. Não precisava tentar tanto. Nós queríamos endireitar o Brasil todo e de uma vez. Não é assim. Eu podia ter sido mais suave, me desgastaria menos e talvez tivesse conseguido mais.
Como era a rotina na Presidência? FH: A coisa mais atormentadora é quando chega nove da noite, entra o chefe da Casa Civil com uma pilha de documentos para assinar...
E depois não se pode dizer que assinou sem ler, né? FH: Mas não lê, né? Porque o que acontece é o seguinte: tudo passa por vários crivos, os dois principais são o advogado-geral da União e o chefe da Casa Civil. Passou pelo ministro, passou pela Casa Civil, pela AGU e depois pela Presidência. O chefe da Casa Civil, quando passa, ele te informa do que se trata. Se for uma coisa mais delicada, você discute. Nesta discussão que está aí hoje (sobre a manutenção do sigilo eterno para documentos de Estado)... Foi no dia 31 de dezembro de 2002, último dia do governo. Porque tem dois canais, ou vem pela Casa Militar ou vem pela Casa Civil. Bem, quando veio esse negócio, eu disse (depois): não é possível que eu tenha assinado isso. Aí chamei o Pedro Parente: vê se é possível que eu tenha assinado isso. Reconstituiu, não passou pela Casa Civil. Foi pela Casa Militar. Sem a assinatura do general Cardoso. Mas eu não sabia. E uma coisa me chama a atenção: nunca nem o Itamaraty nem as Forças Armadas falaram nesse assunto comigo, nunca pressionaram.
Então o senhor assinou sem ver? E quando soube? FH: Quando saiu no jornal, um ano depois. Como eu assinei um negócio proibindo eternamente? Mas Lula nunca desclassificou. E surpreende que o Collor e o Sarney tenham se posicionado (para manter o sigilo eterno), então deve haver algum problema...
É porque está chegando perto do governo deles. FH: Mas será?
Não faz mais sentido, mas dizem que a razão é a Guerra do Paraguai e que o Brasil não ficaria muito bem na fita... FH: Houve outra vez em que assinei também, com parecer e tudo aprovado, uma coisa que deixou a Ruth furiosa, porque restringia o atendimento a aborto. Quando apareceu, você imagina lá em casa! Mas nesse caso tinha pareceres... passou por um canal do Ministério da Saúde. Aí, depois, pedi ao Congresso que rejeitasse, ele rejeitou.
Provavelmente era um período próximo de eleições... FH: É possível. Então pode acontecer. Mas, que eu me lembro, foram esses dois casos. Agora é eletrônico, né?, mas eu me lembro de que o Hargreaves ia para a casa do Itamar, com pilhas e pilhas, e ele ficava desesperado também. É muito cansativo esse negócio de ser presidente, não sei por que o pessoal quer tanto... (risos)
Por que o senhor quis tanto? FH: Pois é, por engano. (ri)
Duas vezes, presidente? FH: Eu sou meio tonto...
O senhor reclamava muito da solidão do poder. FH: Isso sim. Isso é insanável. Porque não é a solidão de pessoas. É que não adianta ter um monte de gente em volta, e você não pode partilhar. Porque, em geral, quando vem uma discussão para a mesa do presidente, é porque as pessoas não se entenderam antes, tem ministro brigando. Não vem coisa boa para o presidente. Só vem bola dividida. E a função da Casa Civil é arredondar a bola. Mas, quando eles não conseguem, vem para você, e aí você tem que decidir.
O senhor falava que o Palácio é um lugar de muita intriga.. . FH: Palácio é um lugar de muita intriga. Eu fui funcionário das Nações Unidas ¿ antes eu era professor -, e lá é uma burocracia pesada, a base de organização daquilo é inglesa, e tudo é hierarquizado, inclusive o número de janelas a que você tem direito na sua sala. Mais janelas, mais poder. Eu nunca fui muito desse tipo de coisa.
E no palácio... FH: Eu mal conheço o Palácio da Alvorada. Eu conheço a sala onde eu andava, mas o presidente não vai às áreas de trabalho. O presidente anda com um séquito, e não dá. Quando o Lula se elegeu, eu falei com o Gushiken, que foi lá, que esse negócio de palácio é complicado, toma cuidado. Porque, se puser muito ministro no palácio, vai dar briga. Não é o ministro que briga, são as equipes. Quanto menos ministro no palácio, melhor.
O senhor já disse que no Palácio não pode haver dois fortes. FH: Não pode. Tem que ter um único, porque se não vira briga burocrática, vira uma coisa...
E agora com três mulheres? FH: Mulher talvez se entenda melhor. Em matéria de gênero, eu não entro. (risos)
Como é conciliar essa solidão povoada com o poder supremo que a função confere? O presidente se sente um pouco rei? FH: Se você se deixar levar pela sua imaginação, vira rei. Se tiver um senso realista, vê que aquilo é transitório. Porque você mora numa repartição pública, por mais bonito... O Alvorada é lindo, a parte superior dele é isolada, e, no meu tempo, só morávamos eu e a Ruth. Eu nunca tive ajudante de ordem morando lá, ninguém. Só os garçons podiam entrar sem avisar. Mas você desce ali, e é uma repartição pública. Moram lá, entre guardas e funcionários do serviço, de 100 a 150 pessoas. Você vai passear no jardim, olha para trás, tem duas pessoas atrás de você. Então, você não está na sua casa, por mais que seja agradável. Você vai nadar, tem alguém te olhando para não morrer afogado. Ou para te afogar (risos). Agora, eu sempre procurei não mudar meu estilo pessoal de viver. Eu e a Ruth. Então, quando vínhamos para São Paulo, íamos para o nosso apartamento aqui. Sempre estive com os mesmos amigos, e aí não tem jeito. Você não vai ser rei. Você é um igual. Tem algumas restrições que são grandes, você não guia automóvel...
Não abre portas.. . FH: Bom, isso eu sempre corria para abrir, mas sempre chegava alguém antes. Por que, quando terminou o governo, eu e Ruth fomos correndo para a Europa? Eu andei de metrô, fiquei num apartamento da dona Maria Sodré. Era bom, mas pequenino. De propósito, para cair na real.
O senhor não teme ser vítima de um conservadorismo moral com essa sua campanha a favor da descriminalização da maconha? FH: Em qualquer outro país, eu temeria. A nossa sociedade é bastante aberta.
O que o levou a se interessar por esse tema? FH: Depois que deixei a Presidência, disse que iria me afastar da política partidária. Disse que iria me afastar e procurar atuar no campo da política de participação cívica. Nesse caminho, o Kofi Annan me colocou como assessor dele para fazer um relatório sobre como a sociedade civil poderia ter uma conexão com a ONU. Depois fiz outro relatório sobre a Unctad. Fiquei presidente do Clube de Madri e organizei uma reunião sobre terrorismo e democracia na Espanha. Depois me meti na questão da Aids. Estive com o Mandela na Noruega, na França, e foi a partir daí. A droga faz parte do mundo global. Li um livro de um amigo chamado Moisés Naím (escritor venezuelano) que mostra como houve a globalização do crime. Foi por aí que entrei nessa questão da droga. Não pela coisa local. Guerra às drogas só não resolve. Você tem que mudar de combater só a produção para reduzir o consumo e dar tratamento e educação.
Se um filho adolescente chegar para o senhor e admitir que fuma maconha, o que diz? FH: Você sabe que isso faz mal. Eu não posso dizer que é pior que o cigarro porque não é. Mas vou dizer que ele é livre para fazer isso, mas questionarei onde ele foi obter a droga, por que ele foi no crime? É melhor regular do que fingir que não existe o problema, porque o seu filho fuma, e ele vai comprar do crime. Agora, se for cocaína, crack, tem que ir para o tratamento.
Isso chegaria ao ponto de se vender livremente a droga? FH: Não. O álcool não deveria ser vendido abertamente. Não é na Europa, nos Estados Unidos, onde menor de 18 não compra. Maconha tem dois problemas gravíssimos. Um é a intensidade, e o outro é que, para obtê-la, você vai ao crime. Eu não sou favorável à legalização.
O PSDB reagiu com preocupação ao seu engajamento, dizendo que essa não é a posição do partido? FH: Eu até entendo e acho que essa matéria não está no momento de ser politizada.
Mas o senhor não teme que numa próxima eleição isso vire munição contra o seu partido? FH: O Tarso Genro era a favor, o Paulo Teixeira é a favor. Não sou a favor das drogas. Sou contra o uso de drogas. As pessoas não viram o filme, têm de ver.
O jogo político favorece a hipocrisia? FH: É possível que sim. Como você aborda esses temas eleitoralmente? Eles vão ser abordados em forma de chantagem. Já fumou maconha ou não? É a favor do aborto ou contra? Acredita ou não em Deus? Eu nunca disse coisas contrárias ao que penso. Sabe como eu respondi à pergunta se eu acreditava em Deus? Disse que isso não era pergunta que se faça. Religião é questão de foro íntimo. Você tem que perguntar ao candidato a prefeito se ele respeita as religiões e não no que ele acredita. Foi a minha resposta, e disso interpretaram que eu disse que era ateu. Na campanha, qualquer que seja sua resposta, vai ser feito assim. Perguntar essas coisas faz mal à sociedade, porque eles (os candidatos) não vão poder responder, e é só para atrapalhar. Esse tema não deveria ir para a política.
O senhor acha que a mágoa do presidente Lula em relação ao senhor é por ter perdido duas vezes no primeiro turno? FH: Não sei se ele tem mágoa. Quando estamos juntos, a relação é boa. O Lula tem essa língua solta, e eu também. Acho que o Lula ficou mesquinho, e ele não precisava renegar o que estava seguindo para ter a glória dele. Ele achou que, para ele crescer, tinha que me botar para baixo. Um cresce no ombro do outro e vai ficando mais alto.
Como o senhor vê a postura da presidente Dilma? FH: Foi diferente. Eu até telefonei para ela para agradecer. Eu fiquei feliz com a carta dela, que me deixou bem satisfeito. Ela reconhece algumas coisas. Meu antecessor, Itamar, embora ele se queixe, não há uma referência minha a ele que não seja elogio. Sem o Itamar, não haveria o Plano Real. Eu acabei de falar do Collor, que fez a abertura. História é História, você não pode borrar a História. (...) Acho que é muito pretensioso você imaginar que os outros não fizeram nada. Se eu dissesse o que o Lula diz, eu seria execrado. O Lula não é (execrado) porque foi trabalhador, pobre, e isso dá a ele uma espécie de imunidade para dizer coisas que não são aceitáveis. Agora, acho que chega.
O senhor nunca voltou aos dois palácios? FH: O Lula nunca me convidou para tomar um café. Tanto o Itamar quanto o Sarney foram ao Palácio. Fiz de propósito um gesto para o general Geisel, o convidei para almoçar. Fiz isso porque tinha sido o primeiro presidente punido pelo AI-5 e eu queria dizer que acabou aquela época. Não iria esquecer o que aconteceu, mas a época é nova. É uma coisa de civilidade. A Dilma me convidou para ir lá. O Lula me convidou para ir com ele ao enterro do Papa, e eu fui. Acho errado isso (de Lula nunca ter chamado para um café, uma conversa), tanto mais porque eu e o Lula tínhamos relação antiga. Vou dizer uma coisa: quando houve o mensalão e razões óbvias para o impeachment do Lula, eu disse que não achava uma boa. Justifiquei que eles iam colocar as ruas contra nós e, por outro lado, ficaria uma marca indelével muito ruim para o país.
Como o PSDB pode fazer essa aproximação com o povão? FH: Como temos os governos de São Paulo e Minas? Porque temos o apoio do povão. Essa é uma outra imagem que o PT joga. A diferença não é povão no voto, mas o mecanismo organizado de controle de movimentos sociais, que é o que eles têm. O PT tem o controle dos movimentos sociais. Como todos os sindicatos mamam na mesma teta, que é o dinheiro público, está tudo acalmado.
O período de grande crescimento econômico não facilita essa identificação? FH: Sem dúvida. A economia está por trás de tudo.
Ao sugerir que não houvesse impeachment de Lula, o senhor não agiu conforme aquele pensamento político brasileiro de ser conciliador sempre? FH: Não. Eu acreditava que eles iam mobilizar a sociedade, e você não faz impeachment sem o povo. Aí vira golpe, e iam nos acusar de golpismo a vida inteira. Segundo, foi essa consideração mais histórica. Eu apoiei que o PSDB levasse o caso para o tribunal, porque aí poderia haver a nulidade da eleição. Mas seria uma coisa traumática. Não sei se seria bom para a consolidação da democracia.