Título: O partido da coca nos Andes
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 19/06/2011, O Mundo, p. 30

enviado especial - LA PAZ, LIMA e QUITO

Os arbustos avançam até dois metros e meio acima do tapete de terra dos Andes amazônicos. Numa composição naturalista reluzem o verde das folhas pequenas, o branco das flores miúdas e o vermelho dos frutos ovais. É a matéria-prima mais cultivada, comercializada e disputada ao longo da cordilheira e dos vales da Amazônia - um grama em pó vale tanto quanto ouro, cerca de US$ 50. A folha de coca tem provocado mudanças sociais relevantes na América do Sul. A novidade é a narcopolítica institucionalizada.

Entre os dias 26 e 28 de agosto em Lima, no Peru, começa a organização do primeiro partido político cocalero - palavra espanhola que designa quem cultiva ou explora a coca. O congresso "de fundação" é promovido por organizações dos produtores de coca do Peru, com a cooperação de entidades similares de Colômbia e Bolívia. Os três países têm oito mil quilômetros de fronteiras com o Brasil, que abriga algumas das principais rotas de tráfico de cocaína para os EUA e a Europa. Os governos sabem que 97% da produção de coca destinam-se ao narcotráfico.

Na reunião de Lima, informam os documentos preparatórios, o primeiro passo será a constituição de comissões e formulação da "doutrina" do futuro partido, com fundamentos na sacralização da coca como "patrimônio cultural", anterior à cultura inca, na legalização da sua lavoura como atividade convencional. A proibição do uso da folha de coca - exceto para fins médicos e científicos - foi estabelecida pelas Nações Unidas há exatos 50 anos. Paradoxalmente, por iniciativa da Chancelaria peruana.

No Peru, 8 deputados ligados ao tráfico

Depois haveria a formalização do partido da coca, ideia que circula há algum tempo. Em março de 2007, por exemplo, líderes cocaleiros do Peru e da Bolívia apresentaram a proposta de legalização da coca ao Grupo Latino-americano da União Interparlamentar, que estava reunido na Venezuela. Conseguiram apoio unânime - incluído o voto da delegação parlamentar brasileira - a um documento admitindo "a necessidade de declarar a folha de coca patrimônio cultural".

O Peru assiste a um amálgama de interesses da cadeia de lucros proporcionados pela folha. Renegados do grupo terrorista Sendero Luminoso montam guarda em plantios na selva para traficantes colombianos, que financiam cocaleiros, cujo representante mais visível é a deputada Elsa Malpartida, do Parlamento Andino. Nas eleições de maio, foi eleita uma bancada de oito parlamentares envolvidos com o tráfico e a lavagem de dinheiro.

- Eles (os cocaleiros) podem criar um partido político, a lei permite - comentou dias atrás o presidente eleito peruano, Ollanta Humala, 49 anos, ex-coronel do Exército.

Na campanha, ele empunhava sacos de folhas de coca e prometia acabar com a erradicação das lavouras, além de subsídios às culturas alternativas, mas "sem afetar" as plantações. Alcançou recorde de 86,9% dos votos válidos em regiões de cultivo.

Essa receita eleitoral fora patenteada em 2006 pelo boliviano Evo Morales, o primeiro líder cocaleiro a chegar à Presidência de um país sul-americano. Morales é um índio-lavrador que ascendeu no sindicalismo do Chapare, epicentro da produção e do narcotráfico na Bolívia. Está no segundo mandato e conserva a liderança da Coordenadoria das Seis Federações, principal entidade dos produtores locais.

A coca floresce com vigor nos países de Humala e Morales. É o resultado da soma de corrupção e leniência nos governos locais com as consequências da guerra interna da Colômbia, onde a área plantada caiu pela metade na última década (de 160 mil a 80 mil hectares). Debilitados por uma ofensiva bélica patrocinada pelos Estados Unidos - cujo gasto médio naquele país tem sido de US$ 480 milhões por ano, segundo o Senado americano - os traficantes colombianos se restringiram às vendas no atacado. Deixaram a distribuição às máfias mexicanas, passaram a financiar o cultivo e o refino no Peru e na Bolívia, e estabeleceram uma espécie de centro mundial de negócios no Equador, que se transformou numa espécie de "Nações Unidas do crime organizado", na definição de Jay Bergman, diretor da agência americana antidrogas (DEA) para os Andes.

Os efeitos dessa expansão da coca ao longo das fronteiras brasileiras, totalmente abertas ao tráfico, são visíveis nas esquinas do Rio e de São Paulo. Agora, na preparação para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o governo brasileiro decidiu negociar com o Peru e a Bolívia acordos de vigilância, com discreta participação dos EUA. Humala e Morales aceitaram.

O país de Humala avança para se consolidar como o primeiro produtor mundial de coca e de cocaína, observa o sociólogo Jaime Antezana Rivera, do Instituto de Estudos Internacionais, de Lima. O espetáculo do crescimento peruano se deve à modernização da lavoura.

- Por meio século, a produtividade da coca peruana foi de uma tonelada por hectare - conta o sociólogo. - Mudamos de patamar, para uma produtividade de 3,21 toneladas por hectare. E, assim, saltamos de uma produção anual de 43 mil para 128 mil toneladas de folha de coca na última década.

E acrescenta:

- A produção de coca peruana cresce à média anual de 4%. E na Colômbia está caindo 9% ao ano. Certamente, vamos consolidar a posição acima dos colombianos neste ano. E mais: estamos dando um salto de 125% na produção de cloridato de cocaína.

Lucro 1.400 vezes maior do narcotráfico

Na Bolívia de Evo Morales, a economia há muito tempo gira na órbita da coca. Ela tem efeitos multiplicadores, da lavoura ao sistema bancário. Com 200 quilos de folhas se produz um quilo de pasta-base. De cada 2,5 quilos de pasta processada, retira-se um quilo de cloridrato de cocaína. Refinado, ele proporciona 800 gramas de cocaína pura. A partir daí, tem-se uma miríade de misturas químicas na distribuição, até chegar ao varejo das cidades sob diferentes formas (crack, oxi, etc). Sobre um custo de US$ 350 pagos a um cocaleiro por 200 quilos de folha, a cadeia econômica do narcotráfico consegue lucrar mais de 1.400 vezes. O quilo de cocaína pura vale no mínimo US$ 500 mil. E esse lucro ainda se multiplica na distribuição varejista.

Os negócios fluem na cadência da influência do setor sobre as instituições. E a Bolívia tem uma experiência histórica, pois é sobrevivente de vários governos envolvidos com o tráfico, inclusive de uma peculiar narcoditadura militar. Aconteceu em 1980, quando Roberto Suárez Gómez, o barão do tráfico na região mais rica do país, Santa Cruz de la Sierra, distante 600 quilômetros de Corumbá, contratou um grupo paramilitar para seu primo, o tenente Luis Arce Gómez. Em parceria com o general Luis García Meza, ele deflagrou um sangrento golpe de Estado: mais de 500 pessoas foram assassinadas. O regime narcoterrorista durou um ano. Hoje, Arce Gómez e García Meza são vizinhos na Penitenciária de Chonchocoro, a 20 minutos de La Paz. Foram condenados a 30 anos de prisão.

Os interesses em torno da coca são antigos, sólidos e evoluem na desordem política sul-americana. Na luta por sua legitimação, a criação de um partido político representa apenas um novo capítulo.