Título: O cotidiano da dor
Autor: Soares, Gláucio
Fonte: O Globo, 25/06/2011, Opinião, p. 7

Durante cinco dias, Neuza viveu o horror de não ter dinheiro para enterrar o filho, deixando o seu corpo no necrotério ou, como ela diz, na geladeira. Terminou recorrendo a uma figura abominável muito presente nas áreas pobres, o agiota. Seu filho, Raimundo, passara a maior parte da adolescência e da vida adulta bebendo cachaça barata. Ao morrer, era pele e osso. Cinco anos antes, Raimundo teve uma chance: Neuza era empregada doméstica e um amigo da patroa o levara a um gastroenterologista de renome. ¿Ou pára ou morre!¿, concluiu o médico após a análise detalhada dos exames. A frase dura surtiu efeito e, durante um tempo, Raimundo parou. Mas ¿o sistema¿ no Brasil também é cruel: sem estudo, sem uma profissão, Raimundo não encaixava no mundo em que vivia. Voltou a beber. Tinha experiência como mecânico, mas alcoolismo não combina com emprego fixo. Não durava nos empregos. Acabou mendigando e vivendo da ajuda dos outros. Mais três anos de cachaça diária e Raimundo selou sua morte. Quando morreu, nada mais funcionava no seu corpo.

Raimundo não foi o único alcoólatra na família. Um irmão menor morreu de cirrose hepática. Ambos começaram a beber na juventude. Um terceiro, o caçula, também bebe e se juntou com uma ex-prostituta viciada em drogas. Tiveram um filho que ela abandonou, juntamente com o marido, porque ele não conseguia custear seu vício. A criança ficou com a avó. A mãe voltou para as drogas e a prostituição para financiar o vício.

Elmira e Joana, faxineiras, são outros exemplos: moram em bairros diferentes, com a família do marido. Trabalhadoras, são elas que sustentam a família. Querem construir um puxado, um quarto para a sua própria família. Acham que ¿o governo¿ deveria pagar por isso, sem se dar conta de que seus maridos, infiéis e alcoólatras, bebem um puxado cada três anos. Não vêem e, quando vêem, aceitam. ¿Homem é assim mesmo¿, diz Joana.

Qual a origem desses problemas? Há várias, que se combinam. A ausência paterna é das mais importantes. O marido de Neuza abandonou-a e aos quatro filhos menores, por mulher mais jovem. Neuza teve que trabalhar dois turnos. E os filhos? A cultura brasileira não enfatiza a independência dos filhos homens, que eram incapazes de estudar, cozinhar, tratar de si mesmos. O peso recaiu sobre Mariana, irmã menor, uma criança que não teve direito a ser criança. Precoce e bonita, casou `¿de menor¿¿ para sair de casa.

Outros países compartilham da mesma experiência. Muitas pesquisas demonstraram o efeito deletério da ausência do pai biológico e, pior, que a figura paterna estável está ficando mais rara. Sara McLanahan mostrou que, nos Estados Unidos, até o início da década de sessenta, metade das crianças vivia com os dois pais biológicos até a maturidade; hoje um terço não conhece o que é nascer no seio de uma família legalmente constituída porque os pais nunca se casaram. A maioria dos casados já não vive junta: começaram como uma família estruturada, mas que é dissolvida antes de as crianças atingirem a maioridade. Pior: uma percentagem substancial dos filhos é exposta a várias crises, brigas, violência doméstica, várias figuras paternas e vários fins de relação. O alcoolismo dos filhos é apenas uma das consequências. Naquele país, mesmo com o apoio e recursos muito maiores do que os nossos, as consequências perversas das incompatibilidades entre os pais afetam, primordialmente, as crianças: a separação, em si, traz problemas. Reduz a probabilidade de que terminem a high school, de que cheguem à universidade, ou de que segurem algum tipo de trabalho; contrariamente, aumenta o risco de que fumem, se tornem dependentes de drogas, morram precocemente de forma violenta e muito mais. Uma percentagem elevada das filhas engravida precocemente.

Os pais ausentes contribuem menos, financeiramente, para seus filhos, do que os presentes. Uma das consequências dos divórcios e separações é uma perda substancial na capacidade financeira das famílias, que afeta a qualidade da vida e o potencial das crianças.

O cuidado e o tempo que uma criança requer tampouco diminui quando o pai se afasta ¿ ao contrário, aumenta. Autoridade e responsabilidade ficam concentradas em mães, que, não obstante, são obrigadas a se desdobrar para recuperar parte da renda perdida. No caso de Neuza, não houve, nem poderia haver, supervisão e autoridade.

Às vezes, esquecemos que a família é muito importante e que pode ter efeitos positivos e negativos. Há um quarto de século, Campbell fez uma revisão de 160 pesquisas sobre as relações entre a família e a saúde dos filhos. A relação é íntima. A família é a maior fonte de estresse do cotidiano e também é a maior fonte de apoio social e psicológico. Porém, o alcoolismo de um de seus membros pode miná-lo. Outra pesquisadora, Tetyana Parsons, afirmou que ¿um alcoólatra pode destruir a vida familiar e causar efeitos permanentes¿. É um problema que afeta oitenta milhões de americanos que enfrentaram o alcoolismo dentro de casa, o que, segundo a SAMHSA, causa mais problemas e rupturas na família do que qualquer outro fator.

E o alcoolismo no Brasil? Há números? Numa pesquisa coordenada por Ronaldo Laranjeira, foram analisadas 2.346 pessoas, chegando à conclusão de que existe uma substancial minoria de binge drinkers (pessoas que bebem cinco ou mais doses num evento): 29%, sendo maior entre os homens, 38%.

Os dados do SUS relativos a 2006, 2007 e 2008 produzem resultados semelhantes: um de cada quatro brasileiros e uma de cada dez brasileiras apresentam um consumo abusivo de bebidas alcoólicas. A idade conta: as mulheres atingem o auge de alcoolismo mais cedo (dos 18 aos 24), baixando gradualmente depois, ao passo que o alcoolismo masculino atinge o ápice dos 25 aos 34, caindo depois. A região também conta: o uso do álcool é maior no Norte e no Nordeste.

Há alcoolismo em todas as classes sociais, mas o tipo varia, e as consequências, também. A pobreza as multiplica. Há áreas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro arrasadas pelo alcoolismo. Contudo, nós, da classe média, as desconhecemos. Só as vemos de fora, da estrada, a caminho para o fim de semana agradável. O estado tampouco as vê. Na medida em que nos afastamos dos bairros mais ricos, o Estado vai se tornando invisível, mas crescem o alcoolismo, a violência e a dor.

GLÁUCIO SOARES é sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.