Título: Livre trânsito de ideias
Autor:
Fonte: O Globo, 20/06/2011, Opinião, p. 6

TEMA EM DISCUSSÃO: A liberação da Marcha da Maconha

Ao liberar a realização emtodo o país das chamadas Marchas da Maconha (e manifestações similares em defesa da descriminalização do uso de drogas), oSupremo Tribunal Federal encerrou uma discussão prejudicada por mal-entendidos. Proibidos em alguns estados, liberados em outros, os protestos convocados davam margem a interpretações, por parte das autoridades contrárias aeles, que ameaçavam resvalar para afrontas ao direito constitucional da liberdade de opinião. O voto unânime de oito dos 11 ministros da Corte presentes àsessão de quarta-feira passada põe fim a esses desacertos de maneira incontestável: o STF fez valer seu papel de guardião da Constituição, deixando claroque a Carta garante aos cidadãos o livre trânsito de ideias. Este é um princípio inegociável das democracias¿e não é outroo objetivo das manifestações, qual seja, sensibilizar a sociedade para o debate sobre um tema inscrito na agenda de todos países atingidos pelo flagelo das drogas.

Que fique claro que o STF deu um veredicto em defesa da Constituição, e não em favor da descriminalização das drogas. Mas é fora de dúvida que a posição da Corte leva água para esse cada vezmais inadiável debate. A expansão do consumo em todo o mundo é prova inquestionável da falência da política, ainda predominantemente adotada nos fronts da guerra contra os entorpecentes, escorada em princípios policial-militares. Amais clara evidência de que tal modelo não tem logrado reduzir substancialmente o comércio e o uso de substâncias entorpecentes está encravada no país que o capitaneia ¿os Estados Unidos. Dentro das fronteiras americanas, o número de pessoas presas, seja pelo consumo ou por envolvimento como tráfico, registra curvas ascendentes, e as verbas destinadas ao combate às drogas são cada vez mais generosas. Os resultados, no entanto, são pouco estimulantes para um problema que se agrava a cada ano. Fora de seus limites territoriais, as investidas contra o tráfico internacional feitas pela ótica de guerra de Washington também não têm maior sucesso. Mesmo quando um determinado cartel éderrotado num país, a migração daí decorrente, dos laboratórios e da rede de traficantes, leva o tráfico para outras áreas, sem prejuízo do movimento e do faturamento das quadrilhas. O contraponto aessa ortodoxa política propõe que se trate tão grave problema pela ótica da saúde pública, com uma política de redução de danos (que ofereça aos viciados a possibilidade de tratamento) e transferindo a questão do consumo da alçada das delegacias policiais para o âmbito de hospitais e clínicas especializadas.

E, no que toca à legislação, com a descriminalização do uso de drogas leves, como a maconha, a mais consumida, sem prejuízo de uma política dura contra o tráfico. Países que têm adotado esta visão, entre eles Portugal, contabilizam resultados estimulantes nas estatísticas de redução do consumo. Em defesa dessa maneira de enfrentar o flagelo há influentes vozes em todo o mundo, como os ex-presidentes Fernando Henrique (que coordena uma comissão internacional pela descriminalização) e o americano Jimmy Carter . É esta discussão que a decisão do STF, em favor do direito àlivre troca de opiniões, certamente há de recolocar na ordem do dia no país. O fundamental, na votação da semana passada, é que a Corte reafirmou a prevalência da Constituição na espinha institucional do país. Cumpre agora debater a questão das drogas, com aliberdade garantida pela Carta e avalizada pelo Supremo.