Título: Mudança de enfoque
Autor:
Fonte: O Globo, 04/07/2011, Opinião, p. 6

Talvez seja o mais representativo exemplo das influências sob as quais foi redigida a Constituição de 1988. Generoso nos propósitos, o Sistema Único de Saúde (SUS) estabeleceu a universalidade no atendimento à população, algo em discussão acirrada nos últimos anos nos Estados Unidos, devido ao projeto do governo Barack Obama de ampliar a cobertura da saúde pública naquele país.

O debate americano se centra, acertadamente, na questão da disponibilidade de recursos para financiar o aumento da cobertura do Medicare. Já naquele Brasil do fim da década de 80, saído de 21 anos de ditadura, imerso num ciclo de inflação severa, algumas palavras de ordem eram quase consensuais, como eleições diretas, liberdade de expressão, etc.

Havia, ainda, por contraditório que parecesse, grande tendência em se manter o Estado presente na sociedade. Não mais como vigilante fiscal do regime, mas provedor das famílias de baixa renda, agente no combate à pobreza.

O SUS derivou desse espírito, ainda contaminado por ilusões do "socialismo real" - por ironia, no ano seguinte à promulgação da Carta, aquele mundo ruiria de vez junto com a derrubada do Muro de Berlim. Até devido à formação cultural, não havia preocupação na Constituinte sobre se o Estado teria recursos para sustentar aquele projeto de país. Ainda não se vislumbra no horizonte o momento em que no Brasil haverá uma discussão técnica, política e ideológica sobre a capacidade de o Erário arcar com determinada despesa. Aqui, embora a Lei de Responsabilidade Fiscal impeça, continua-se a pensar em despesas sem preocupação com as fontes de receita.

O SUS, em parte, padece deste mal. Mas não só dele. No momento, o governo Dilma tenta evitar que, na aprovação da regulamentação da Emenda 29 - que vincula verbas do Orçamento a gastos na Saúde -, cometam--se desatinos contra o princípio da responsabilidade fiscal, dentro da conhecida filosofia reinante em Brasília de que o Tesouro é dono de um talão de cheques sempre com fundos - uma ilusão.

Aprovada em 2000, de autoria do senador José Serra, a emenda necessita de regulamentação para evitar distorções na aplicação dos recursos. Há estados e municípios que registram como despesas com Saúde gastos com restaurantes populares, por exemplo, contra o espírito da emenda. Por ela, a União precisa aumentar os gastos no setor na mesma proporção do PIB, enquanto estados e municípios devem atingir 12% das receitas com estas despesas.

Todo este debate pressupõe que o principal problema do SUS é a falta de dinheiro. Mas há outro aspecto que, com a criação da Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade, se espera venha a ser tratado com seriedade. É a questão da má administração dos bilhões que fluem pelo sistema, sem controle, sem medição de eficiências, definição de metas. Apenas uma ínfima parte dos volumosos recursos transferidos pela União ao SUS nos estados e municípios é auditada. E, quando há fiscalização, descobrem-se fraudes generalizadas.

Na primeira reunião da Câmara, sob presidência do empresário Jorge Gerdau e com a participação, entre outros, da ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman, a Saúde foi um dos setores escolhidos para a primeira atuação efetiva do organismo. Oportunidade que não pode ser perdida para se enfrentar a "falta de recursos", num país de carga tributária sufocante, pela melhoria da gestão dos altos tributos já arrecadados.