Título: Um rei testado nas urnas
Autor: Bloch, Arnaldo
Fonte: O Globo, 01/07/2011, O Mundo, p. 27

Marroquinos decidem hoje se aceitam plano de Mohamed VI para monarquia constitucional

CRIANÇAS CARREGAM fotos do rei Mohamed VI em um protesto a favor das reformas em Rabat: indícios de aprovação nas urnas

ATIVISTAS CONTRÁRIOS à proposta também foram às ruas protestar pelo ¿não¿ até o último minuto: medidas insuficientes

Arnaldo Bloch arnaldo@oglobo.com.br

No Marrocos, a Primavera Árabe teve seu ápice no chamado movimento 20 de fevereiro de 2011 ( formado por vários espectros da sociedade e impulsionado por redes sociais) exigindo plenitude democrática e evolução para uma monarquia parlamentar e no subsequente discurso do rei Mohamed VI, em 9 de março, propondo uma nova Constituição que diminui e dessacraliza seus poderes, aumenta a legitimidade do primeiro-ministro, mas mantém sob as rédeas do monarca o Exército e a religião. Agora, no quentíssimo verão marroquino, é chegado o momento de votá-la no referendo marcado para hoje.

À véspera do pleito, nos cafés, nas praças, no mercado da antiga medina, nos parques, nos arredores do Parlamento ¿ onde pequenas manifestações celebram, pelo sim e pelo não, o plebiscito ¿ o povo se divide entre os que discutem os novos ventos; os bem-falantes, que se sentem à vontade com as perguntas em francês; e os que ignoram completamente o que se passa na sociedade civil instruída e na classe política. Operários, artesãos, biscateiros, pessoas com baixo nível de instrução sequer sabem do que se trata, enquanto religiosos mais ortodoxos preferem dizer-se indecisos a declarar o voto contrário, ou o boicote, apoiado por islamistas radicais, reformistas que desejam mudança imediata ¿ e não uma transição ¿ e parte do movimento de 20 de fevereiro. Nesses grupos, a abstenção é a palavra de ordem.

¿ O patrão não está ¿ diz um soldador que trabalha à porta de uma oficina com um rolo de fiação, quando indagado sobre seu voto.

Entusiasmo e ceticismo nas ruas

Um taxista que ouve a conversa, entusiasta do sim, trata de esclarecer:

¿ Um dos problemas que o governo vai ter que resolver é o da educação. Dizem que o rei é responsável pelas malversações de dinheiro. Mas nos seus 12 anos à frente do país ele mostrou sua face progressista e sua preocupação com a pobreza. Agora, ele vai lavar as mãos e deixar o fundamental nas mãos da classe política.

Mais adiante, sentados à mesa de uma confeitaria, um professor universitário de física que não se identifica e que pede informações detalhadas ao repórter toma café com seu velho mestre, o professor de direito Kandil Abdelaziz, 75 anos, que não tem problemas nem em dizer o nome nem em se declarar cético quanto às reformas:

¿ O rei está oferecendo as mudanças como um adulto oferece um doce a uma criança. Mas são mudanças muito lentas que em nada modificam a base parlamentar, construída por intermédio de fraudes e compras de votos. A mudança tinha que vir da base para cima, com novas eleições gerais imediatas e total renovação, para que se tenha um Parlamento representativo ¿ analisa Kandil.

O ex-aluno anônimo ¿ defensor de um Estado islamista e da proibição da conversão de muçulmanos, um dos pontos inegociáveis da proposta ¿ pensa o inverso: num país que já teve cinco Constituições e passou por dois golpes de Estado nas últimas décadas, a mudança tem que vir de cima para baixo mesmo, ser progressiva e manter a coesão religiosa, que garante ¿a autenticidade da nação em coabitação pacífica com outros credos¿.

Ele ecoa as palavras do engenheiro Balkhoukhal Boubker, de 46 anos, que se junta à conversa:

¿ É um momento de pragmatismo. Precisamos minimizar as perdas e privilegiar a chance de transformação. Estamos prontos para a mudança.

No interior da medina, ao longo da via central do populoso labirinto, várias faixas com a foto do monarca se estendem a cada cem metros, com dizeres que garantem que aquela comunidade está a favor de suas propostas. Ali, com exceção dos tantos que não sabem de nada, os poucos que aceitam falar sobre o plebiscito o fazem à base de mesuras e homenagens:

¿ Eu voto sim porque eu amo o rei ¿ resume, em árabe (traduzido por um colega), com um grande sorriso, o vendedor de especiarias que se identifica simplesmente como Aied.

Abstenção alta é a maior ameaça

Num processo eleitoral sem pesquisas de intenção de voto é impossível prever quantos dos aproximadamente 13 milhões de eleitores marroquinos ¿ numa população de 34 milhões ¿ irão comparecer hoje aos 40 mil postos de votação espalhados pelo país. Com a propaganda governamental ecoando nos canais de televisão e nas capas de revistas e jornais, e considerando a posição dos partidos ¿ a maioria mobilizada pelo sim, capitaneada pelo poderoso Istiqlal, pelos islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento e mesmo por partidos socialistas e de caráter popular aliados ¿ tudo indica que a proposta passará.

Mas a sombra da abstenção paira sobre o processo. Nas eleições parlamentares de 2007, apenas 37% do eleitorado foi às urnas ¿ o nível mais baixo registrado no país, num fenômeno atribuído à indiferença. Enquanto o governo admite, fazendo projeções, que pelo menos 20% não irão votar, sondagens pela internet, embora sem caráter científico, dão resultados que chegam aos 50% ¿ o que traria novos questionamentos sobre a solução ponderada que Mohamed VI encontrou para responder ao apelo, também moderado, das ruas.

* O repórter viajou a convite do governo do Marrocos