Título: Ex-viciado, hoje prefeito
Autor: Hofmeister, Naira
Fonte: O Globo, 03/07/2011, O País, p. 13

Pires criou fazenda de tratamento

PORTO ALEGRE. Vicente Pires (PSB) é prefeito de Cachoeirinha, cidade de 118 mil habitantes a 20 minutos de carro de Porto Alegre. É também, na gíria dos dependentes químicos, um "graduado", alguém que enfrentou nove meses de tratamento em uma comunidade terapêutica e deixou o vício das drogas sem auxílio de remédios - seguindo apenas os 12 passos do programa Narcóticos Anônimos (N.A.).

Pires, de 48 anos, começou a fumar maconha aos 16. Quando chegou aos 30 anos, levou o seu escritório de contabilidade à falência para sustentar o vício em cocaína.

- Eram 15 gramas de pó e duas garrafas de whisky por dia - relembra hoje.

Aos 33, antes de ser pai pela quarta vez, se internou em uma fazenda para dependentes em Montenegro. Com 35, já "limpo", foi preso e, aos 46, em 1º de janeiro de 2009, tomou posse como prefeito, apesar das dezenas de carros de som que percorriam a cidade durante a campanha qualificando-o como maconheiro e cheirador.

Em abril deste ano, Pires inaugurou uma experiência inédita no Brasil, ao criar a primeira Comunidade Terapêutica Pública (CTP) do país. O modelo da Renascer foi apresentado pelo prefeito à presidente Dilma Rousseff em 22 de junho e pode ser a inspiração para que o governo federal promova a inclusão dessas instituições no Sistema Único de Saúde (SUS).

- Comunidades terapêuticas são o tratamento mais eficiente para a dependência - diz Pires, com a segurança de quem tentou a cura com a ajuda de psiquiatras, medicação pesada e até internação em hospital para doentes mentais.

Há uma década, o hoje prefeito estava terminando de cumprir pena de seis anos em regime semiaberto por apropriação indébita de INSS e FGTS dos empregados de sua firma - dinheiro aplicado na compra de drogas. Ele se aliou ao então candidato a prefeito de Cachoeirinha - o atual deputado federal pelo PSB José Stédile - , que se elegeu e o convidou a integrar seu gabinete.

Pires sugeriu a Stédile que o município reservasse, em clínicas de desintoxicação, leitos para dependentes sem condições financeiras de pagar o tratamento. Procurou o amigo e diretor de tratamento da Clínica Recreo, Otávio Luiz dos Santos Furtado. O baixo custo oferecido pela clínica possibilitou que, em dez anos, o programa De Cara Limpa expandisse de cinco para 50 os leitos disponíveis para a população de Cachoeirinha.

- Atendemos mil famílias e nos orgulhamos de ter recuperado cerca de 200 pessoas - conta o agora prefeito.

Pires até hoje paga cerca de R$500 por mês para cada um dos internos do município na Recreo. Em abril, foi criada pela prefeitura a Comunidade Terapêutica Pública (CTP) Renascer, fora da área urbana de Cachoeirinha e com capacidade para tratar 30 homens. Recebe mensalmente R$18 mil do Executivo. As outras 20 vagas municipais seguem na Recreo, e neste momento estão sendo utilizadas por oito mulheres e 12 pré-adolescentes.

Entre os 3.500 servidores municipais, pelo menos 20 já passaram pelas fazendas e conseguiram superar o vício. Um dos sustentáculos do tratamento é a "laborterapia". Na fazenda municipal, além do trabalho com o gado, a horta e o pomar, há uma padaria e uma fábrica de fraldas, com oficinas profissionalizantes. Os internos realizam todas as tarefas necessárias, como cozinhar e limpar a casa.

A ideia do prefeito é tornar a CTP superavitária, utilizando a estrutura da casa para fornecer itens necessários ao município. As fraldas poderão ser encaminhadas para os asilos da cidade, economizando aproximadamente R$10 mil de verba pública. Os hortifrutigranjeiros e pães serão a merenda das creches do município.

- Também tenho um projeto de organizar um consórcio entre quatro ou cinco cidades vizinhas, de forma que cada uma destine um valor mensal para a CTP em troca de vagas - afirma Pires.

* Especial para O GLOBO