Título: Pirataria impune
Autor: Herdy, Thiago
Fonte: Correio Braziliense, 14/08/2009, Brasil, p. 8

Familiares das vítimas da adulteração de medicamentos cobram punição de empresários acusados pelo crime

Júnior, Maria do Amparo e Alessandra: revolta com a morte de Ricardo Diomedes, depois de ter ingerido contraste adulterado para fazer uma radiografia

Rio de Janeiro ¿ Nos episódios que chocaram o Brasil e serviram como primeiro alerta para o risco da falsificação de remédios e equipamentos médicos, envolvendo as marcas Celobar e Androcur, a sensação de impunidade foi o que restou às famílias das vítimas, além da saudade. Na sexta reportagem da série Cura falsificada, o Correio/Estado de Minas mostra que a venda do laboratório do Celobar a uma empresa off-shore uruguaia, poucos meses antes do escândalo, pode ter facilitado a ocultação de bens do dono, o empresário carioca Márcio D¿Icarahy. Condenado à prisão, nunca frequentou uma cela, porque recorreu em liberdade. Mesmo caso do empresário José Celso Machado de Melo, responsável pela distribuição do Androcur falso. Ele abriu uma empresa de cosméticos, que também são tratados pela Anvisa como produtos de saúde. José Celso anda em carro de R$ 90 mil e divide os fins de semana entre o sítio e a gruta que comprou perto de Belo Horizonte.

A falsificação do contraste para radiografias da marca Celobar completa seis anos sem que as famílias das 22 vítimas do medicamento tenham qualquer perspectiva de receberem reparações pelo episódio. Isso porque poucos meses antes do escândalo envolvendo o laboratório carioca Enila, responsável pela fabricação do medicamento, uma empresa off-shore uruguaia, a Medvac Med Y Vacunas Interamericanas, adquiriu nada menos que 62% do laboratório.

Em 2003, a adulteração do contraste matou duas dezenas de pessoas e deixou outras 250 com sequelas. O registro da empresa no Uruguai, obtido pelo Correio/Estado de Minas, mostra que todos os atos de administração, apropriação e disposição do patrimônio da Medvac no país vizinho foram delegados, na época, a Paulo Henrique Oliveira Rocha Lins. Trata-se do advogado do empresário Márcio D¿Icarahy Câmara Lima, o dono do laboratório Enila. Ele também detinha procuração para defender os interesses da Medvac Brasil. O sigilo comercial garantido pelo governo uruguaio às companhias ali instaladas impossibilitou a Justiça brasileira de saber quem eram os reais donos da Medvac e o patrimônio de que dispunham.

Como a falência do Laboratório Enila foi decretada pouco tempo depois do escândalo envolvendo o Celobar, restou aos antigos funcionários e vítimas do medicamento lutar pela apropriação dos bens imóveis que não foram vendidos, mas que ainda precisam ir a leilão. Este processo tornou-se ainda mais lento depois que um antigo funcionário da empresa, Joelson Reis, decidiu se mudar para a velha fábrica de líquido para contraste com o pai, o irmão, e mais de 100 cães vira-lata que recolheu pela rua. ¿Só saio daqui quando me pagarem R$ 350 mil de indenização¿, garante.

Advogado de duas das 22 vítimas do Celobar, Ricardo Dezzani, aposta em uma nova estratégia para garantir o pagamento a seus clientes: cobrar a conta da multinacional de medicamentos Glaxo Smithkline, sob a alegação de que a empresa e o Laboratório Enila faziam parte do mesmo grupo econômico na época do episódio envolvendo o Celobar. A ligação entre as duas firmas teria sido feita pela própria Glaxo, em processo que tramitou na 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, em razão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) ter declarado a perda dos direitos sobre uma marca que ambas usavam.

A Justiça do Trabalho também proferiu decisões que consideravam as duas empresas parte de um mesmo grupo. ¿A última possibilidade de os familiares das vítimas receberem alguma indenização depende dessa conexão. Mas, o processo anda muito lento na Justiça¿, afirma Dezzani. A Glaxosmithline Brasil contesta a alegação do advogado e afirma que em nada tem a ver com a conduta praticada pelo laboratório Enila, por isso não poderia ser responsabilizada pelo ocorrido, tampouco pagar indenização pelo erro cometido por outra empresa.

Em janeiro deste ano, o diretor-presidente do Laboratório Enila, Márcio D¿Icarahy, foi condenado pela 38ª Vara Criminal do Rio a 20 anos de reclusão em regime fechado. Na mesma sentença, o químico da empresa, Antônio Carlos da Fonseca Silva, responsável pela fabricação da substância, foi condenado a 22 anos. Mas os dois recorreram da sentença e estão em liberdade, o que revolta parentes e amigos das vítimas. D¿Icarahy não mora mais no luxuoso prédio em que vivia na Barra da Tijuca. O Tribunal de Justiça do Rio tem dificuldades para encontrá-lo. Ele foge de oficiais de Justiça, por isso é citado apenas por edital nos processos em que figura como réu.

1 - Fabricação no quintal Em fevereiro de 2002, o laboratório Enila, fabricante do Celobar, recebeu 6 toneladas de sulfato de bário do laboratório alemão Sachtleben Cheme, um dos quatro no mundo com autorização para a fabricação. Não pagou a encomenda e a companhia cortou o fornecimento. No ano seguinte, o laboratório carioca resolveu produzir a substância no próprio quintal, sem ter competência técnica. A partir de reações químicas do bário, técnicos do laboratório produziram carbonato, ao invés de sulfato. A substância é venenosa e usada para matar rato. O insucesso do experimento não impediu a empresa de vender 4.500 unidades de Celobar a clínicas e hospitais de todo o país, principalmente em Goiás.

Contraste fatal

Ricardo Diomedes, 57 anos, Rio de Janeiro

Na década de 60, Maria do Amparo Diomedes tinha 18 anos quando trabalhava como empregada doméstica e se apaixonou pelo rapaz que pintava apartamentos do outro lado da rua, em Copacabana. Compraram um terreno em Anchieta, o mais distante bairro da capital. O primeiro filho tinha três meses de idade quando se mudaram para o barracão de madeira. Construíram uma casa juntos. ¿Tudo o que eu fazia era para ajudar meu marido.¿ Ela o viu pela última vez bem de saúde às 7h da manhã de uma sexta-feira, em 16 de maio de 2003, quando ele saiu para fazer uma radiografia e voltou vomitando.

Deu-lhe leite e chá de folha de goiabeira, mas a dor só aumentou. Foi levado para o hospital. À noite, já não conseguia falar, tampouco se mexer. Amparo ainda chora muito quando lembra do filho, Ricardo Júnior, dizendo a ela, no dia seguinte, que o pai não tinha aguentado, ¿foi embora¿. O médico atestou morte em decorrência de diabetes. Mas a polícia pediu a exumação do corpo, porque Ricardo havia ingerido contraste para radiografia adulterado. A verdadeira causa da morte foi descoberta assim. Amparo perdeu o ¿esteio da casa¿. ¿sspNo Natal, eu assava frango, e fazia aquele arroz gostoso, uma farofa. A gente comia na beirada da rua, em Copacabana¿, lembra ela.

Alessandra, filha de Ricardo, trabalhava em um quiosque de shopping quando, na véspera de Natal, viu Márcio D¿Icarahy, o responsável pelo laboratório fabricante do líquido que matou Ricardo, passeando pelos corredores. O reconheceu por causa das fotografias de jornal. Apresentou-se como a filha de uma das vítimas do contraste que o empresário produziu, que não tinha mais a quem chamar de pai. Ele se assustou. Respondeu que o ocorrido havia sido uma fatalidade. Alguns anos depois, ela o viu de novo na fila de um supermercado, beijando uma mulher mais nova. ¿Ele matou meu pai e outras tantas pessoas, como a vida dele pode estar normal?¿ Naquele dia, ela lembrou do pai beijando a mãe.