Título: Velha guarda prepara a transição
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 17/08/2009, Mundo, p. 14

Crise econômica leva o Partido Comunista a adiar congresso que marcará a aposentadoria da geração de Fidel e Raúl Castro e seus companheiros da guerrilha.

Foi o próprio Raúl Castro, presidente de Cuba e na prática o comandante máximo do regime, desde o afastamento do irmão Fidel, quem anunciou com alguma solenidade: o próximo congresso do Partido Comunista (PC), previsto originalmente para o fim deste ano, será o último sob o comando da geração que lutou na Serra Maestra e entrou triunfalmente em Havana em janeiro de 1959. ¿É a lei da biologia¿, resignou-se o veterano dirigente, que conduz aos 78 anos o esforço para revitalizar um sistema que manifesta agudos sintomas de senilidade ao completar meio século.

¿É preciso passar o bastão para que as novas gerações construam outro socialismo, pois o atual estancou¿, decretou no fim de 2008, em Madri, o compositor Pablo Milanés, um dos ícones da Nova Trova Cubana. ¿Não confio em nenhum dirigente cubano com mais de 75 anos¿, emendou. Silvio Rodríguez, outro trovador de renome internacional, comunista de carteirinha e até há poucos anos deputado, voltou ao tema no último dia 31, em Assunção (Paraguai): ¿A revolução neste momento precisa de mudanças, de aprofundamento, de sangue jovem¿, afirmou. ¿Mas de jovens que acreditem nos patriotas que tornaram a revolução possível¿, observou.

Preparar melhor a transição foi uma das razões para o adiamento do congresso, formalizado pelo Comitê Central no fim de julho, segundo transpirou em meios de esquerda latino-americanos. Não foi marcada nova data. Oficialmente, a decisão ¿ que não chega a constituir uma novidade na história atípica do PC cubano ¿ foi justificada em nome de ¿definir a sociedade socialista a que aspiramos e o modelo econômico que regerá a vida da nação¿. Reservadamente, um funcionário cubano afirmou que se trata de uma conjunção entre ambos os fatores: a velha guarda ¿quer arrumar melhor a casa antes de passar o comando¿ para os novos dirigentes.

¿O normal, nos países socialistas, costumava ser a realização do congresso a cada cinco anos, coincidindo com os planos quinquenais¿, explicou essa fonte. Segundo o molde ortodoxo do socialismo de tipo soviético, o conclave partidário traçava linhas estratégicas para o desenvolvimento do país no período seguinte. Aos organismos de Estado cabia a tarefa de ¿carimbar¿ as decisões. ¿Mas no mundo de hoje, quem pode planejar alguma coisa para cinco anos depois? Quem podia prever a crise financeira?¿

A economia cubana está bloqueada pelos Estados Unidos, mas nem por isso passa incólume pelos sobressaltos no centro nervoso do capitalismo. Ao contrário, a montanha-russa nos mercados e a recessão global empurraram a ilha para a crise mais aguda desde o colapso do bloco soviético, no fim dos anos 1980. Mais do que uma ironia, o que a direção liderada por Raúl parece captar é um traço comum aos dois momentos: a dependência crônica e pronunciada de bens importados, um ¿vício¿ que vem desde a economia açucareira do período pré-revolucionário e se perpetuou. Hoje, a locomotiva do modelo exportador é o níquel.

Ajuste Tirar o país da letargia produtiva é a meta principal das medidas com as quais o novo presidente pretende ajustar o país antes da inevitável aposentadoria da velha guarda. A prioridade absoluta é garantir o abastecimento de alimentos e estimular a indústria de bens de consumo não duráveis, para aliviar a pauta de importações e desonerar o balanço de pagamentos. O próprio Raúl admitiu, no último dia 1º, em discurso para a Assembleia Nacional (leia trechos), que o país ¿se viu forçado a renegociar dívidas e outros compromissos¿, contrariando a política de pagar em dia. ¿Claro que se poderia realizar o congresso, definir planos e deixar os ajustes para a nova geração, mas isso seria apenas empurrar os problemas com a barriga¿, arrematou o funcionário cubano.

Atalho regimental O adiamento do 6º Congresso não significa que a direção do PC cubano continuará intacta sem prazo à vista. O Comitê Central (CC) decidiu convocar, pela primeira vez desde a fundação do partido, em 1965, uma conferência nacional, instância imediatamente inferior e com autoridade para renovar instâncias como o próprio CC e o poderoso Birô Político. Este, que toma as decisões práticas, resume em sua composição o dilema etário da Revolução Cubana: dos 23 integrantes, nove são septuagenários e apenas sete nasceram depois de 1959.

Trechos // Raúl Castro

Discurso à Asembleia Nacional, em 1º de agosto

» Não sou economista, nem me coube, nos anos da revolução, dedicar-me aos detalhes do desenvolvimento da economia. Mas parto da lógica de que ninguém, nem um indivíduo nem um país, pode gastar indefinidamente mais do que o quanto ganha.

» Dois mais dois sempre soma quatro, nunca cinco. (Mas) nas condições do nosso socialismo imperfeito, por causa de deficiências próprias, muitas vezes dois mais dois dá três como resultado.

» Os gastos na esfera social devem estar em consonância com as possibilidades reais, e isso impõe que sejam suprimidos aqueles de que é possível prescindir. Pode se tratar de atividades benéficas e até louváveis, mas não estão ao alcance da economia.

» Podemos contar com muitos universitários graduados, (¿) mas quem vai cuidar da terra? Quem vai trabalhar nas fábricas e oficinas? (¿) Às vezes, dá a sensação de que estamos nos alimentando do socialismo antes de construí-lo, e aspiramos a gastar como se estivéssemos no comunismo.

» O adiamento do congresso (do PC) não significa a mais mínima paralisação nos preparativos. Ao contrário, essa decisão implica a necessidade de dar passos inadiáveis, como a renovação dos organismos superiores de direção do partido.

>> perfil Mariela Castro

Rebelde por herança

Ela nasceu no ano em que Cuba e o resto do mundo viveram em perigo. Em 1962, as pendências acumuladas com os Estados Unidos desde a revolução de 1959 subiram como fervura e, em outubro, produziram a crise dos mísseis: por 13 dias, a humanidade conteve a respiração à espera de uma guerra nuclear por causa das ogivas atômicas que a União Soviética estava instalando na ilha, praticamente na janela de Miami.

Como 70% dos cubanos de hoje, Mariela Castro não conheceu outra realidade que não a do conflito irreconciliável com a grande potência. Talvez por isso mesmo, a filha de Raúl Castro, irmão e sucessor de Fidel, ousa dizer que a chegada de Barack Obama à Casa Branca pode ¿mudar a história¿ de Cuba e do mundo. Uma afirmação que, à parte o otimismo, traz embutida uma constatação pouco usual entre hierarcas do regime comunista: de que algo pode ou deve mudar depois de 50 anos.

Ninguém em sã consciência chamará Mariela de ¿dissidente¿. Antes mesmo de o pai assumir definitivamente o posto, ela se referia ao tio como ¿estupendo¿. E, embora não figure nominalmente no Politburo ou em outra posição de destaque do Partido Comunista ou do aparelho de Estado, tornou-se uma espécie de retrato falado da nova geração revolucionária.

A começar, pela escolha da profissão: sexóloga, em um país onde a história quis colocar em confronto a proverbial licenciosidade dos trópicos, o machismo latino clássico e um sistema político-social que ainda não encontrou a risca separando a liberdade individual do individualismo puro e simples. O resultado desse encontro está expresso na iniciativa que fez de Mariela a nova face da dinastia Castro: graças a ela, Cuba já não manda homossexuais para a ¿correção¿, como era a norma nos anos 1960 e 1970.

Pode parecer pouco quando se pensa nos impasses e desafios colocados para a revolução aos 50 anos. Mas não deixa de ser sintomático que essa personalidade independente aflore justamente quando Raúl ensaia uma correção (sem aspas) de rumo no processo cubano.

Mariela, tiete do tio cujo nome se confunde com a história da ilha neste meio século, faz questão de ser ¿filha de peixe¿. Quando fala sobre o pai, ressalta qualidades que ajudam a explicar sua própria fama de ¿rebelde¿, ¿independente¿, dona do próprio nariz. ¿Papai sempre soube ouvir. Tem um apreço enorme pela direção coletiva e colegiada, está acostumado a distribuir funções e responsabilidades¿, disse recentemente.

Em comum com a geração mais célebre da família, ela tem o apreço pela privacidade. Por vezes, é vista com o marido (italiano) e os filhos em Varadero, a praia onde apenas a elite do regime divide espaço com os turistas que trazem para o país as divisas desesperadamente necessárias. De sua vida pessoal, pouco se sabe além disso.

Sabe-se que tem trânsito em meios acadêmicos, intelectuais e artísticos. E, do pouco que fala sobre si, muito chega por via indireta: são comentários e reminiscências da vida como filha do novo presidente. Mariela valoriza no pai o jeito bonachão, a atenção curiosa, o senso de dever que o transformou em pivô de ciúmes da família para com a revolução. Mais precisamente, dos filhos, educados para entender os compromissos públicos também da mãe, Vilma Espín, espécie de matriarca do feminismo pós-revolucionário. Veterana da Serra Maestra, onde enlaçou seu destino ao de Raúl, Vilma fundou a Federação das Mulheres Cubanas e integrou a cúpula do regime até a morte, em 2007.

Mariela jamais foi cotada ¿ pelo menos até aqui ¿ para se tornarem sequer candidata a um dia suceder o pai, ou mesmo a ocupar algum cargo de primeiro plano. Seja como for, é nesta dose homeopática de ousadia política da ¿primeira-filha¿ que se depositam hoje algumas das expectativas mais otimistas quanto ao próximo meio século de Cuba. Até pelas afinidades inevitáveis com a bagagem histórica do homem com quem seu pai admite dialogar ¿sem pré-condições¿: Barack Obama, nascido em 1961, também chegou à vida adulta com o conflito entre Washington e Havana estabelecido. Ambos cresceram na Guerra Fria, mas a viram terminar a tempo para que esse se tornasse um dado fundamental de sua vida pública. (SQ)