Título: As cavalariças da política
Autor:
Fonte: O Globo, 23/07/2011, Opinião, p. 6

QQuem leu ¿Os 12 trabalhos de Hércules¿ vai se lembrar do quinto desafio: limpar as cavalariças do rei Áugias, que abrigavam a mais numerosa manada de cavalos da Grécia Antiga. Como o rei não limpava as estrebarias, ao longo do tempo foi se acumulando uma espessa camada de esterco que exalava terrível mau cheiro. Qualquer tentativa de remover a imundície liberava gases venenosos. Hércules encontrou uma solução original: desviar o curso de dois rios que, com o ímpeto de suas águas, limparam as cavalariças.

Enfrentar a corrupção, remover esse esterco, é trabalho hercúleo. Vai exigir de nós, brasileiros, uma energia que, distraídos e conformados, não temos demonstrado. Por que aceitamos a corrupção? Como não percebermos, pobres otários, que nos batem a carteira?

Faltava estabelecer o elo de causa e efeito, que a mídia vem sublinhando, entre o desgosto cotidiano com os serviços públicos e os patrimônios privados que se multiplicam surfando em um mar de lama e cinismo. Talvez fosse a ausência desse elo que explicasse o aparente imobilismo.

Ainda não nos habituamos a reconhecer nos que, ocupando postos públicos, roubam, deixam roubar ou não punem quem rouba, os bandidos que são. Mais do que falsos espertos que nem as tragédias comovem ¿ ao contrário, delas se aproveitam ¿ são criminosos de alta periculosidade. Cada brasileiro está sendo assaltado por um bandido sem revólver.

A corrupção faz escola e impede que se façam escolas. Crianças e doentes são as principais vítimas como O GLOBO mostrou em recente reportagem.

Reagimos a cada nova denúncia como se fossem fatos esparsos, fragmentos de mais um dia. Não são. A corrupção é um só e imenso escândalo em vários atos em que se vai desvelando a transformação do Estado e da política em balcão de negócios. Cada obra pública, uma oportunidade para um malfeito. Cada cargo público, um lugar privilegiado para vantagens ilícitas.

Tudo isso num clima de deboche, de magoados fazendo muxoxos porque perderam postos e ameaçam se vingar tornando o país ingovernável. Tudo às claras porque a plateia, que somos nós, está ali para assistir, rir ou chorar... e pagar.

A corrupção é a grande ameaça que pesa hoje sobre o nosso futuro. O Brasil vem desfazendo sucessivos nós. A pobreza mobilizou a indignação dos que a recusavam como parte da paisagem, e a paisagem mudou. Na ditadura militar descobrimos que a liberdade é como ar que só parece indispensável quando nos falta. A censura encobria não só a tortura, também a corrupção. Restabelecemos a democracia.

A estabilidade econômica deu um golpe certeiro nas malandragens instaladas nas brechas da desordem da inflação. A exasperação da sociedade com a violência urbana, a honestidade e a coragem de um secretário de Segurança desmentiram lendas sobre exércitos mais bem armados do que o próprio Exército e territórios inexpugnáveis.

Assim foi-se construindo o país de que hoje começamos a nos orgulhar. O enfrentamento da corrupção é condição de preservação da democracia e esperança de regeneração da política. Contanto que superemos o sentimento de impotência e desesperança que a impunidade espalhou.

Foi duro para os signatários do Ficha Limpa ver um bando de Ali Babás sendo empossados. Não falta indignação, faltam os mecanismos que facilitem a coagulação desse sentimento fluido, falta como traduzir um desejo latente em ação eficaz.

Contamos com aliados preciosos. A mídia que, atenta, denuncia; o Ministério Público que investiga; a parte viva do Judiciário que, como uma célula-tronco, pode regenerar seus tecidos mortos, punindo sem conivências.

Mas falta alguém. A presidente da República, que, em seu discurso de posse, prometeu ser implacável com a corrupção. No Ministério dos Transportes está cumprindo a palavra. Se assumir essa tarefa hercúlea, catalisará o que há de melhor no país, em todos os partidos, gêneros e gerações. Criará um fato político inaugural, colhendo um apoio amplo e surpreendente na sociedade .

Os políticos se habituaram a negociar na viscosidade dos conchavos de gabinete onde a chantagem é a regra. Quando a sociedade entra no jogo, se movimenta, é como um rio em cheia capaz de dispersar esses gases venenosos . A presidente terá desviado o curso dos rios.

Caso contrário, temo ¿ e lamentaria ¿ que seu governo, refém de um sistema político caduco, se estiole numa sucessão de escândalos que faria do futuro uma volta ao passado. Sua biografia não merece esse desastre. Nem aqueles que esperam tanto de uma mulher no poder.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br.