Título: Um atestado falso com aval de parlamentares
Autor: Carvalho, Jailton de
Fonte: O Globo, 01/08/2011, O País, p. 5

Dois senadores e dois deputados federais favorecem entidade irregular em contrato com Ministério do Turismo

BRASÍLIA. Quatro parlamentares de Santa Catarina assinaram atestado falso de funcionamento a uma entidade que firmou, em 2011, um convênio com o Ministério do Turismo no valor de R$4 milhões. Os senadores Casildo Maldaner (PMDB) e Paulo Bauer (PSDB) e os deputados Valdir Colatto e Edinho Bez, ambos do PMDB, declararam por escrito que o Instituto Cia do Turismo, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), está em atividade desde 2003. Mas a ata registrada em cartório informa que a entidade surgiu em julho de 2008. Por lei, uma entidade só pode receber recursos públicos depois de três anos de existência.

Em 2009 e 2010, Edinho Bez também chancelou a regularidade da entidade. Nos últimos três anos, a Cia do Turismo recebeu outros R$7,9 milhões do ministério. A ONG nasceu a partir de uma nebulosa transação entre o advogado Nicolau Jorge Meira, ex-presidente da Santur, estatal do turismo catarinense, e o estudante Raphael Lobo Fonseca, ex-presidente do Comitê de Ideias e Ações, ONG encarregada de arrecadar recursos para a creche Tia Angelina, no Varjão, bairro pobre de Brasília. Logo depois de deixar o comando da Santur, em 2007, Meira se apropriou do CNPJ do Comitê de Ideias, que estava inativa desde 2002, e, com uma mudança de nome, de endereço e de estatuto, transformou a ONG voltada para caridade numa bem-sucedida empresa de consultoria em turismo.

A metamorfose foi rápida. Em 3 de janeiro de 2008, Meira, mesmo sem pertencer aos quadros do Comitê de Ideias, convocou uma reunião da entidade. No edital de convocação não constam data ou horário do encontro. Numa reunião na semana seguinte, Meira é apresentado como novo sócio e imediatamente escolhido presidente da ONG. Seis meses depois, a entidade transfere a sede de uma casa no Lago Sul para o Setor Comercial Norte, muda o nome para Instituto Cia do Turismo e abandona os ideais de caridade.

Mais de R$2 milhões em apenas três contratos

O edital de convocação e as atas da reunião, onde se operou a milagrosa transformação, estão arquivados no cartório do 2º Ofício de Registro de Pessoas Jurídicas, em Brasília. Seis meses após sua criação, entre 30 e 31 de dezembro de 2008, a Cia do Turismo assinou, de uma só vez, três convênios com o Ministério.

No primeiro contrato, recebeu R$840,2 mil após apresentar a proposta de implementar "ações de apoio à comercialização do produto turístico de Santa Catarina". No segundo contrato, ganhou R$507,5 mil para incentivar a "comercialização do produto turístico do Ceará". No terceiro contrato, mais R$1 milhão e a promessa de "qualificação para marketing promocional os destinos turísticos" no que "diz respeito a estratégias de marketing de divulgação". Os projetos faziam parte do programa de estímulo ao turismo em 65 cidades do país.

O desempenho da Cia do Turismo melhorou ainda mais nos anos seguintes. Entre 2009 e 2010, a ONG firmou mais sete contratos, cinco com o ministério e dois com a Embratur. Entre os papéis anexados por Meira para se credenciar aos convênios estavam as declarações do deputado Edinho Bez. Este ano, ele incluiu também atestados assinados pelos senadores Casildo Maldaner e Paulo Bauer e pelo deputado Valdir Colatto. As declarações foram escritas em papel timbrado do Senado e da Câmara, e têm firma reconhecida em cartório.

No documento assinado em 16 de março de 2011, os quatro parlamentares catarinenses declaram "para os devidos fins que o Instituto Cia do Turismo, reconhecido como Oscip pelo Ministério da Justiça, CNPJ 09.359.271/0001-02, com sede em Brasília, SCN QD. 1, Bloco F, sala 1906, Edifício América Office Tower, está em funcionamento desde 06/03/2003".

Ministro cancelou repasse de R$4 milhões

As declarações dos senadores e deputados contradizem os papéis da Cia do Turismo e até do Comitê de Ideias. Entre os documentos das duas entidades estão declarações da Receita Federal com a informação de que o Comitê de Ideias, que teve o CNPJ usado pela Cia, permaneceu inativo desde sua criação até 2008.

Na quinta-feira, após ser procurado pelo GLOBO para falar sobre o assunto, o ministro do Turismo, Pedro Novais, determinou a suspensão do repasse de R$4 milhões que seriam destinados ao mais recente convênio da Oscip. O ministro também suspendeu o pagamento de mais R$16,3 milhões que seriam liberados para outras ongs.