Título: Como em uma canção do The Clash
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Fonte: O Globo, 12/08/2011, O Mundo, p. 29

UM HOMEM tira fotos dos danos em uma loja em Manchester

Não deixa de ser paradoxal: o governo britânico havia eleito há alguns dias ¿London Calling¿ como canção oficial para a campanha publicitária dos Jogos Olímpicos de 2012. Nada tinha a ver o hino do punk rock com a pompa do maior evento esportivo (e comercial) do mundo. Hoje, as imagens da capital britânica ardendo revestem jornais e imagens na TV. Como se estivesse se libertando de uma camisa de força, a canção cobrou seu significado original nas ruas, onde a raiva e o desencanto se transformaram em violência e distúrbios.

Seguramente, muitos dos jovens encapuzados que saqueiam o comércio em Londres e outras cidades nunca tinham ouvido The Clash, ainda que seja difícil imaginar que não tenham recebido alguma ressonância de ¿London Calling¿, um dos discos mais citados por músicos de todo tipo e que aparece periodicamente nas listas de ¿o melhor de...¿. E contudo, de alguma maneira, é como se os textos de Joe Strummer ganhassem vida mais de 30 anos depois que ¿London Calling¿ promovesse The Clash não somente como um grupo com um radar musical deslumbrante, mas também como uma referência ideológica. Se os Sex Pistols eram provocação acima de tudo, Strummer, Mick Jones e companhia deram ao punk amadurecimento e consciência social. Seu aparente niilismo conhecia o peso da realidade e da História, suas letras buscavam a ação de uma sociedade britânica atolada na depressão econômica.

¿Londres chamando as cidades distantes / agora que a guerra é declarada / e a batalha começa / Londres chamando ao inferno / saiam do armário, meninos e meninas.¿ Com suas guitarras cortantes, assim começa a letra de ¿London Calling¿, que muitos na internet querem tornar o hino oficial dos protestos. Para dizer a verdade, o cenário de 1979 se parece muito com o de 2011.

Ainda que se tenda a dizer que o punk britânico, com os Pistols e The Clash na cabeça, nasceu como resposta ao conservadorismo de Margaret Thatcher, convém recordar que o brutal ¿Never Mind the Bollocks, Here¿s the Sex Pistols¿ saiu em 1977 e The Clash já tinha três trabalhos nas costas antes que a Dama de Ferro chegasse ao poder em maio de 1979. Como hoje, uma boa parte da sociedade foi golpeada pela crise econômica dentro de um ambiente de marginalização e discriminação.

O punk do The Clash era fruto do chamado Inverno do Descontentamento. Com a ressaca mundial que a crise de petróleo de 1973 deixou, o primeiro-ministro britânico, o trabalhista James Callaghan, teve que renunciar em 1979 quando o país estava havia anos em queda livre e se encontrava em paralisia permanente entre greves gerais, desemprego e inflação fora de controle. Antes, como agora, o trabalhismo não soube dar resposta à depressão econômica, e os conservadores chegaram ao número 10 de Downing Street com um programa de cortes de benefícios. A tensão dos cidadãos aumentou até saltar a faísca da revolta. Foi Thatcher, e agora Cameron, quem não ofereceu garantias, mas pediu mais sacrifício a milhões de pessoas em uma situação dolorosa. A violência de rua e racial nos bairros mais pobres se sucedeu em vários episódios nos anos 80 como hoje brotam em diversos pontos do Reino Unido.

¿London Calling¿ se encerra com ¿Train in Vain¿, canção que representa o sentimento de perda e abandono, presente na revolta atual. Embora The Clash nada tenha influído nos protagonistas destes distúrbios, que andaram escutando música eletrônica ou rap, se Joe Strummer levantasse a cabeça, teria uma boa razão para pegar uma guitarra e compor uma nova canção.

FERNANDO NAVARRO é jornalista do ¿El País¿