Título: Modelo egípcio para a ordem britânica
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Fonte: O Globo, 12/08/2011, O Mundo, p. 29

Em medida já usada por ditadores, primeiro-ministro ameaça bloquear mídias sociais para conter distúrbios e deflagra debate sobre censura

POLICIAIS INVADEM uma casa em Brixton, sul de Londres, em busca de objetos roubados durante os distúrbios

HOMEM ASSISTE no YouTube a um vídeo do ataque ao estudante malaio

LONDRES

Apagões na internet e na telefonia celular já foram usados como forma de tentar desarticular protestos no Egito e na Tunísia, durante manifestações por mudanças. A medida, tachada na ocasião pelo Ocidente como censura, voltou a ser cogitada ontem. Desta vez, não num país onde sua população é impedida de escolher seus governantes, mas no Reino Unido. A declaração do premier David Cameron de que poderá bloquear temporariamente as mídias sociais e torpedos durante distúrbios como os vistos nos últimos dias dividiu opiniões no país onde foi escrita a primeira Magna Carta garantindo liberdades individuais ¿ acendendo, agora, o debate sobre os limites entre o que é a necessidade de manter a ordem pública e o que é censura.

Os distúrbios, que já resultaram na morte de três jovens, espalharam-se rapidamente de Londres para Birmingham, Manchester e outras cidades britânicas, acelerados por mensagens via Twitter, Facebook ou o serviço de mensagens gratuitos do BlackBerry (BBM). Pelo menos 20 pessoas já foram presas por incitar ataques via internet, e Cameron vê num possível bloqueio uma forma de conter os saques e depredações. Especialistas, no entanto, advertem para o risco de suspender as comunicações.

¿ Eventos como estes distúrbios frequentemente são usados para atacar liberdades civis ¿ lembrou Jim Killock, diretor-executivo da ONG Open Rights Group. ¿ Negócios, política e liberdade de expressão se baseiam em segurança e privacidade. Cameron deve ter cuidado para não atacar direitos fundamentais ao se preocupar com ações de uma minoria.

Outros, no entanto, mostram-se favoráveis à medida. Jim Waddington, professor da Universidade de Wolverhampton e especialista em segurança, não tem dúvidas sobre o papel da tecnologia nos distúrbios.

¿ Os jovens avisam que conseguiram entrar nas lojas para saqueá-las, sobretudo pelo sistema de mensagens do BlackBerry. Agora que a empresa colabora com a polícia, é o momento de frear esse efeito ¿ disse. ¿ Quando as forças de segurança conseguirem dominar o sistema, o problema diminuirá.

Decisão não salvou regimes autoritários

¿Qualquer um que esteja no norte (de Londres) venha às 4 em ponto à Estação de Enfield¿, dizia uma mensagem enviada por BBM no início da semana e reproduzida na internet. A partir do código ¿22C9A2(..) #southeast london #blackberry #BBM. #Add¿, os usuários entravam num chat privado e viam mensagens como ¿Enfield está sendo saqueada¿.

O governo anunciou ontem que a ministra do Interior, Theresa May, vai se reunir com chefes da polícia e representantes de Twitter, Facebook e a fabricante do BlackBerry, Research In Motion, para discutir o assunto. Segundo uma fonte, uma ideia era bloquear os suspeitos individualmente. Além de usar a própria rede para rastrear incitadores, a Scotland Yard está colocando imagens de saqueadores no Flickr, site de compartilhamento de fotos, para ajudar na identificação.

No Parlamento, Cameron destacou que ¿o fluxo livre de informação pode ser usado para o bem, mas pode ser usado também para o mal¿.

¿ Estamos trabalhando com a polícia, os serviços de inteligência e a indústria para ver se é correto deter a comunicação via esses websites e serviços quando sabemos que estão conspirando para violência, desordem e criminalidade ¿ disse o primeiro-ministro.

A eficácia da medida foi logo posta em dúvida, com especialistas lembrando que ações para bloquear a internet em Egito e Tunísia não detiveram as manifestações que acabaram por derrubar ditadores. Na China, internautas tentam driblar o controle do Estado hospedando seus sites em servidores no exterior. John Bassett, um ex-funcionário da inteligência e atual membro do Royal United Services Institute, acha que o governo britânico deve evitar agir com mão de ferro:

¿ Aqueles governos que tentam usar antigos modelos de controle tendem a fracassar, perdendo legitimidade e o respeito ¿ disse.

Conservador vê erro ¿político colossal¿

Um colega de Cameron no Partido Conservador, e que pediu anonimato, vê a medida como um ¿colossal erro político¿.

¿ Esse pode ser seu (furacão) Katrina ou suas Falklands ¿ disse ele referindo-se à Guerra das Malvinas.

O discurso do premier despertou ainda uma série de criticas no Twitter. O blogueiro egípcio Mahmoud Salem, conhecido como Sandmonkey, escreveu: ¿Se o Reino Unido limitar as mídias sociais para conter os distúrbios, então estaremos testemunhando um momento revelador para os regimes do Primeiro Mundo.¿

Salem se referia a uma mudança de postura de Cameron. Em fevereiro, o premier elogiou o papel das mídias sociais na queda de regimes autocráticos, descrevendo-as como ¿uma poderosa ferramenta nas mãos de gente cansada de corrupção¿. Cameron ressaltara ainda que a liberdade de expressão e a internet deveriam ser respeitadas ¿tanto na Praça Tahrir quanto em Trafalgar Square.¿

¿Oh, Cameron, você sabe que bloquear as mídias sociais não deterá os distúrbios. Mas pode temporariamente interromper as críticas ao seu governo¿, tuitou Kate Crawford, pesquisadora da Universidade de New South Wales em Sydney, Austrália.