Título: Linhas cruzadas
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 22/08/2009, Mundo, p. 30

Em visita ao país vizinho, presidente Lula oficializa crédito para obra viária. Associação local de engenheiros aponta superfaturamento e pede revisão

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina hoje, na Bolívia, a concessão de um financiamento de US$ 332 milhões do BNDES para a construção da estrada que ligará Villa Tunari a San Ignacio de Moxos, nos departamentos de Beni e Cochabamba. A obra vem causando polêmica no país governado por Evo Morales. O valor total, orçado em US$ 415 milhões, foi questionado pela Sociedade de Engenheiros Bolivianos (SIB) de Cochabamba, assim como os detalhes técnicos ambientais, uma vez que a via cortará o parque natural Isiboro-Secure e áreas indígenas.

A obra estava parada por causa de supostas irregularidades no acordo entre a Administradora Boliviana de Estradas (ABC, em espanhol) e a construtora brasileira OAS, que ganhou a licença como única candidata para realizar o projeto. O Congresso boliviano congelou a construção e ordenou uma auditoria para verificar as denúncias dos engenheiros de Cochambamba de que haveria superfaturamento. O porta-voz da OAS na Bolívia, Pablo Siles, disse que o deslocamento de profissionais e maquinaria, para dar início à obra, ¿dependerá do tempo que o Congresso demore para aprovar o contrato de financiamento¿.

O ex-presidente da SIB José Mendez disse ao Correio, por telefone, que no último momento liberaram a construtora brasileira da provisão do asfalto e da manutenção. ¿Agradecemos o financiamento do Brasil, mas não faz o menor sentido que um contrato como esse, do tipo `chaves em mãos¿ ¿ que inclui projeto, construção e manutenção da estrada ¿, custe tão caro e a OAS não pague asfalto nem manutenção¿, comentou. ¿É claro que queremos essa estrada, tão importante. Por termos uma opinião diferente, poderia parecer que somos maus cochabambinos, maus bolivianos. Mas, como profissionais, temos que ter antes de tudo a capacidade de emitir um critério técnico, e não político¿, justificou-se Mendez.

Renegociação Os engenheiros pediram aos executivos da ABC que revisem o valor da licitação e negociem com a OAS os termos do contrato, antes que ele seja referendado pelo Congresso. ¿Considerando a extensão de 306km de estrada, o custo por quilômetro será de US$ 1, 36 milhão, montante significativamente mais alto comparado a obras similares em planície e montanha, que vão de US$ 500 mil a US$ 700 mil por quilômetro¿, diz um pronunciamento da SIB de outubro de 2008. Mendez estima que a estrada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos não deveria custar hoje mais de US$ 315 milhões ¿ isto é, o Estado boliviano pagaria um adicional de US$ 100 milhões pela obra. A reportagem entrou em contato na quarta-feira com a ABC, na Bolívia, e a OAS, em São Paulo, para que justificassem o valor da licitação, mas não recebeu resposta até o fechamento da edição.

Os engenheiros de Cochabamba sustentam que, pelo valor de US$ 415 milhões, a OAS inclua a manutenção e o asfalto; que o material seja de maior durabilidade do que o apresentado; que a estrada chegue até o Rio Mamoré, contribuindo para a integração com a Amazônia brasileira, já que no projeto faltaria um trecho de 70km para ligar San Ignacio de Moxos ao rio; e garantam a conservação do parque nacional.

O atual presidente da SIB, Antonio Siles, consultado pela reportagem, preferiu não comentar os cálculos da gestão anterior, mas destacou a importância da estrada. ¿É esperada há muitos anos, prioridade nacional para integrar extensas zonas produtivas no norte da Bolívia que estão muito mal vinculadas ao resto do país¿, afirma.

Opção controversa

Um estudo divulgado pela Administradora Boliviana de Estradas (ABC) demonstrou que o país é o mais atrasado no projeto da estrada bioceânica, assinado por Brasil, Bolívia e Chile em 2007, para conectar o Pacífico ao Atlântico e desenvolver o comércio regional. O Brasil já tem todos os trechos prontos, e no Chile falta apenas um. Para a Bolívia, será necessário reconstruir grande parte das estradas, totalizando 331km. O engenheiro e ex-vice-ministro de Transportes da Bolívia Luis Gonzalo Maldonado disse ao Correio que serão necessários cinco anos para concluir as obras, com investimento total de US$ 180 milhões.

Maldonado pondera que conectar os vales subandinos de Cochabamba e a região amazônica de Beni é importante, mas que o governo boliviano deveria dar prioridade à consolidação da rota entre os oceanos ¿ estradas que já existem, mas que estão em péssimas condições e sofrem interdições temporárias. ¿São dias, semanas em que não há circulação e muitos milhões de dólares que se perdem, já que por essa zona passa 70% do comércio que a Bolívia movimenta¿, explica.

Segundo o Itamaraty, o Brasil faz uma análise da viabilidade econômica das obras e não questiona a preferência do governo boliviano em obter financiamento para a construção em Beni e Cochambamba, em vez de ajuda para a estrada interoceânica. Para o ministério brasileiro, a obra escolhida é prioritária para a Bolívia no plano de infraestrutura viária, um dos elementos centrais da agenda Brasil-Bolívia. De acordo com o porta-voz da Presidência brasileira, Marcelo Baumbach, ¿a futura rodovia estará também conectada aos trechos rodoviários Arroyo Concepción-El Carmen e El Carmen-Roboré, integrantes do Corredor Rodoviário Bioceânico¿.

Para o cientista político bolviano Gonzalo Rojas, o governo tenta articular radialmente o país. ¿Villa Tunari está bem conectada a Cochabamba e Santa Cruz. Com a nova estrada, será possível conectar à capital de Beni, Trinidad¿, explica. No entanto, o analista reconhece que também pode haver ¿interesses político-eleitorais¿ na divulgação dessa obra de grande porte. ¿A base mais sólida do presidente Morales está ali. Villa Tunari, em termos reais, é a capital do Chapare¿, destaca Rojas, mencionando a região cocaleira onde o atual presidente construiu sua liderança sindical e política. (VV)

A estrada é prioridade nacional para integrar extensas zonas produtivas no norte da Bolívia¿

Antonio Siles, presidente da Sociedade de Engenheiros Bolivianos (SIB)

Não faz sentido que um contrato como esse custe tão caro¿

José Mendez, ex-presidente da SIB

O número US$ 332 milhões Valor do financiamento aberto pelo governo brasileiro para as obras viárias na Bolívia

Telefonema a Obama

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou ontem a Barack Obama a preocupação dos países integrantes da União de Nações Sul-americanas (Unasul) com a ocupação de bases militares colombianas pelos Estados Unidos. Em conversa telefônica com o colega norte-americano, Lula sugeriu a Obama que participe de uma reunião com os presidentes da Unasul.

O próximo encontro está marcado para o dia 28, em Bariloche, mas não chegou a ser citado por Lula durante a ligação, que durou cerca de 40 minutos. Segundo o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, Obama teria se comprometido a discutir a possibilidade com seus subordinados.

Lula disse a Obama que, apesar de respeitar a soberania dos países, o Brasil considera importante que haja garantias, por escrito, de que as bases militares serão utilizadas somente no território colombiano e para ações contra guerrilha e o narcotráfico como vem dizendo o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. De acordo com Amorim, Obama disse que enviará um funcionário do Departamento do Estado para tratar do assunto com o Brasil.

A situação de Honduras também foi tratada durante a conversa. Embora tenha dito ao presidente Obama que não deseja a intervenção dos EUA no país, Lula pediu que os norte-americanos pressionem Honduras a aceitar a volta do presidente deposto Manuel Zelaya. Obama, conforme Amorim, disse que também pretende estudar o assunto.