Título: Rendição honrosa para Sirta
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 29/08/2011, O Mundo, p. 24

Antes de atacar cidade de Kadafi, rebeldes negociam revolta interna que salve aparências

NUM CARRO REPLETO de pertences, motorista agita uma bandeira branca, próximo a um posto de controle rebelde a cerca de 160 quilômetros de Sirta

UM OFICIAL rebelde dá instrução militar a recrutas em Benghazi, nos preparativos para o ataque a Sirta, se negociações falharem

deborah.berlinck@oglobo.com.br

Abatalha de libertação da Líbia entrou na fase final. Com a conquista de Trípoli, a capital, o alvo agora voltou-se para a alma do regime de Muamar Kadafi: Sirta, cidade do ditador, na beira do Mar Mediterrâneo, onde imagina-se que seus fiéis estejam concentrados. Tropas rebeldes se mobilizavam para espremer Sirta como um sanduíche: homens entrando pelo leste e ao mesmo tempo pelo oeste. E cresce o temor de um banho de sangue. Ontem, havia vários caminhões na estrada entre Trípoli e Misurata ¿ cidade que foi palco de um dos mais violentos enfrentamentos entre seguidores de Kadafi e rebeldes, e que trocou de mãos várias vezes. Mas o ataque a Sirta está num compasso de espera: para evitar mais mortes, rebeldes estão tentando negociar a rendição da cidade. O Conselho Nacional de Transição confirmou a negociação, mas disse que, se ela falhar, irá adiante no ataque. Ahmed Bani, porta-voz militar do governo de transição, foi claro a respeito:

¿ Vamos continuar negociando o tempo que for necessário. No entanto, a libertação dessas cidades (Sirta e outras ainda nas mãos dos kadafistas) vai acontecer mais cedo ou mais tarde. É uma questão de dias.

Segundo Mohamed Asheikhi, um rebelde, como na Líbia os códigos de honra nas tribos são importantes, não é propriamente uma rendição que se está negociando, mas sim uma saída menos humilhante para a tribo de Kadafi. A ideia é que os que não o apoiam na tribo se rebelem, e sejam imediatamente ajudados por rebeldes de outras duas tribos: Ferjani e Medeani.

¿ Assim, seria possível dizer que Sirta começou sua própria revolução ¿ explicou Asheikhi, um líbio-americano de 23 anos formado nos EUA em Relações Internacionais, e que sonha, dentro de dez anos, ser o representante da Líbia nas Nações Unidas.

Conquista abrirá corredor ao longo da costa

Mohamed Absdala Ben Rassali, um dos comandantes dos rebeldes em Misurata, confirmou a estratégia:

¿ Queremos que a revolução em Sirta comece lá dentro. Depois, nós entramos para ajudá-los a expulsar o pessoal de Kadafi.

Omar Salem Abeiub, outro rebelde, mostrava ontem uma lista de líbios de Misurata, prontos para a batalha de Sirta. Só de Misurata, seriam 1.400 homens.

¿ Não sei quantos homens Kadafi tem em Sirta, mas não é um problema para nós. Metade dos civis de lá está conosco ¿ disse.

Sirta é uma cidade pequena, com 73 mil habitantes. Sua conquista, entretanto, é simbólica e estrategicamente importante porque é um reduto kadafista bem no meio da costa líbia, impedindo o leste e o oeste conquistados pelos rebeldes de se unirem. Derrubando Sirta, cria-se um enorme corredor rebelde ao longo da costa, o que facilita a queda dos focos kadafistas em outros lugares. Em março, rebeldes estavam se preparando para atacar Sirta. Mas foram impedidos pelas tropas de Kadafi em Bin Jawad, cidade próxima dali. Bin Jawad acaba de ser libertada.

A conquista eventual da cidade natal de Kadafi ainda não vai ser o final da história. Outro bastião kadafista, Sabha, no sudoeste da Líbia, e com uma população bem maior que Sirta ¿ 130 mil habitantes ¿ é uma preocupação: Kadafi teria estocado armas químicas na cidade. Ela teria ainda uma base aérea intacta. E, além disso, é próxima da fronteira da Líbia com o Níger e o Chade, dois países que apoiam Kadafi.

Enquanto isso, em Misurata, moradores tentam voltar à vida normal, depois de meses de violentos enfrentamentos. A Rua Trípoli ¿ uma das principais de Misurata ¿ é o retrato desolador de uma guerra: não há um prédio inteiro, e até postes estão crivados de balas. Num dos pontos da rua, moradores puseram restos do confronto na calçada, como um museu a céu aberto: pedaços de bomba, de uniformes, de tanques. E o museu continua no interior de uma sala num prédio destruído, onde fotos de mortos foram penduradas nas paredes, com a data da morte. Adel Jamal Swessi, de 26 anos, toma conta do museu improvisado. Sei pai, que trabalhava na administração de uma escola em Misurata, morreu vítima de um atirador do regime de Kadafi: foi atingido por duas balas no dia 19 de março.

¿ Na família, só perdi o meu pai, e isso foi muito. Eu quero ver os filhos do Kadafi queimando. E depois, Kadafi queimando ¿ disse.

Os que ficaram fora de Misurata durante a batalha e voltaram agora para ver quem conseguiu sobreviver ficaram chocados. Foi o caso dos irmãos Hisham Badi, de 33 anos, e Elhdi Badi, de 40. Hisham disse que perdeu a conta dos amigos e primos mortos em Misurata. Já o irmão afirmou que, apesar das mortes, está contente:

¿ Estou feliz de ver a Líbia livre. Kadafi estragou minha vida. Quero ver Kadafi primeiro amargando anos na prisão. Depois, sendo enforcado.