Título: Maluf, 80: um dicionário de malfeitos
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 28/08/2011, O País, p. 12

ÉTICA X CORRUPÇÃO

SÃO PAULO. Malufar: surrupiar, adulterar. Com prisão decretada nos Estados Unidos e todos os bens bloqueados no Brasil e em seis países, o deputado Paulo Maluf (PP-SP) virou sinônimo de malfeitos no dicionário e chega aos 80 anos no próximo sábado deixando ao país um legado de impunidade. Responde a três ações penais e a um inquérito, que se arrasta há mais de cinco anos no Supremo Tribunal Federal (STF), por supostos crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha e corrupção. Em São Paulo, é processado por improbidade, o que lhe rendeu 41 dias de prisão e o bloqueio dos bens. Nada mais.

Enquanto promotores e procuradores aguardam, o deputado pode se beneficiar da idade, com a iminente prescrição dos crimes. Responde a dezenas de processos. O mais grave diz respeito ao sumiço de pelo menos US$344 milhões dos cofres paulistanos durante sua gestão como prefeito (1993-1996). Nada disso, no entanto, será citado na festa preparada por sua mulher, dona Sylvia, para celebrar seus 80 anos no Teatro São Paulo.

Um dos escândalos mais antigos, a compra de Fuscas para a seleção da Copa de 70, ficou para a história. Maluf foi inocentado do crime de uso do dinheiro público e não devolveu um só centavo. Também tem se livrado de outra denúncia, o Frangogate, sobre a compra por parte da prefeitura de aves de uma empresa da família Maluf.

Ex-prefeito biônico no governo militar (1969), quando governador, em 1971, Maluf criou a Paulipetro, com US$500 milhões, e perfurou 69 poços na bacia do Rio Paraná em busca de petróleo. Nada encontrou. Foi processado e condenado, mas não houve reparação ao erário porque Maluf recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e as decisões foram suspensas. A todas as condenações, o ex-prefeito tem interposto recursos atrás de recursos. Sua eleição para deputado colaborou com o atraso nos julgamentos. Com o foro privilegiado, os processos "subiram" para o STF.

- Costumo considerar esse caso quase didático, porque apresenta um esquema de lavagem de dinheiro - diz o procurador Rodrigo de Grandis, do Ministério Público Federal.

A história de desmandos com o dinheiro público não barrou a candidatura de Maluf. Ano passado, o Tribunal Regional Eleitoral considerou-o ficha suja, mas a decisão foi revertida na instância superior. Contente, o deputado bradou que tinha "a ficha mais limpa do Brasil". Hoje é membro da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) ao lado do homem que o prendeu, o deputado e delegado federal Protógenes Queiroz.

- Enquanto ele tiver poder e dinheiro, nada lhe acontecerá. Pobre que comete o menor delito fica na cadeia eternamente - diz o delegado.

Verbete do "Dicionário de Usos do Português no Brasil", o termo malufar extrapolou a barreira da língua. "De tanto malufar, os Maluf foram presos", escreveu o francês "Le Monde" em 2005, quando o ex-prefeito e seu filho Flavio foram encarcerados pela Polícia Federal, acusados de coagir uma testemunha que os acusou de chefiar empresas offshore e contas bancárias em seis países: Estados Unidos, Ilha de Jersey, Suíça, França, Luxemburgo e Reino Unido.

Boa parte do dinheiro foi bloqueada por meio de acordos internacionais. Em Nova York, a Promotoria Pública decidiu processar Maluf e Flávio, decretando a prisão deles e levantando alerta da Interpol em mais de 180 países. Nem Maluf nem o filho podem deixar o Brasil sem que sejam presos. O deputado teria tentado acordo com a Justiça americana no qual chegaria a admitir o crime de falsificação de registros contábeis, mas a negociação não deu certo.

Seria o primeiro crime admitido pelo deputado, que nega todos os outros. Só em Jersey, estão bloqueados US$150 milhões em ações da Eucatex, empresa de Maluf, e US$13 milhões em dinheiro. Foram bloqueados US$13 milhões na Suíça, US$8 milhões em Luxemburgo e US$5 milhões na França.

Até agora, a prefeitura de São Paulo conseguiu o ressarcimento de US$1,4 milhão em Jersey, mas espera o repatriamento de todo o dinheiro. No Brasil, a fortuna declarada de Maluf, cerca de R$34 milhões, está bloqueada, assim como todo o patrimônio da mulher e dos filhos, sendo que Flavio Maluf, à frente dos negócios do pai, teria R$40 milhões bloqueados, segundo o Ministério Público.

Diante de dez anos de investigação, o promotor Silvio Marques insiste que Maluf não é símbolo de impunidade. Mas o julgamento, diz o promotor, pode levar uns sete ou oito anos:

- Improbidade não prescreve e o dinheiro está bloqueado. Maluf já foi um símbolo de impunidade, mas não é mais. Ele não pode sair do país porque é procurado nos Estados Unidos; ele passou 40 dias preso, todos os seus bens estão bloqueados. Você diria que isso é estar impune? Eu, por exemplo, não tenho nenhum desses problemas.

"Mente como quem troca de roupa", diz cientista política

Para a cientista política Maria Celina D"Araújo (PUC-Rio), a impunidade, no Brasil, "vai além de Maluf":

- Maluf é um político que caracterizamos como resquício da ditadura. Fez carreira no âmbito do poder autoritário, por meio de conchavos políticos. O decepcionante é que esse tipo de político foi gerado também depois, como parte de uma política sistêmica de corrupção.

A cientista cita os alegados problemas de saúde de Maluf e o flagrante dele feito em seguida, comendo pastel e com uma latinha de cerveja à mesa:

- Mente-se como quem escova os dentes de manhã, como quem troca de roupa.

O GLOBO tentou entrevistar Maluf durante toda a semana, mas o pedido não foi respondido. O advogado dele, Ricardo Tosto, não deu entrevista.

Nos 41 dias na carceragem da PF em São Paulo, nunca abriu mão do luxo. Encomendou um tapete persa e reformulou o cardápio da prisão. Perguntava os nomes do "papai e da mamãe" dos presos e elogiava-os. E conseguiu ser chamado pelos companheiros de cela da forma que mais gosta: "doutor Paulo".