Título: Em SP, maioria dos crimes sem autoria definida fica sem apuração
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 04/09/2011, O País, p. 4

Estudo mostra que de 344 mil boletins de ocorrência só 6% viraram inquéritos

SÃO PAULO. A impunidade para os crimes de homicídio no Brasil vai além dos 80% de pedidos de arquivamento para os inquéritos abertos até 2007. Levantamento do pesquisador Sergio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, revelou que entre 20% e 40% dos casos de assassinatos levados às delegacias paulistas sequer se tornam inquérito. E as vítimas têm endereço certo: bairros pobres da periferia e favelas.

Adorno se debruçou sobre 344 mil boletins de ocorrência para revelar que apenas 6% são transformados em inquéritos. Em caso de homicídio, de 60% a 80% viram inquérito, mas a maioria dos crimes sem autoria definida fica sem apuração. E aponta a desigualdade no tratamento dado aos pobres mortos. O estudo foi realizado sobre os anos de 1991 a 1997, mas o pesquisador, que estuda a impunidade há dez anos, disse acreditar que a realidade nas delegacias não tenha mudado.

- Os homicídios investigados são os que têm autoria conhecida. Casos que envolvam um corpo que foi encontrado, uma vítima do tráfico de armas ou o crime organizado raramente são investigados. Em geral se argumenta que não há provas nem elementos - diz o pesquisador. - Se o policial é vítima, há todo o empenho para fazer a investigação. Se é um suspeito, aquela figura do "criminoso suspeito", em geral não é investigado. Muitas vezes tem auto de resistência ou suspeita com o crime organizado que não são investigados. É como se houvesse um forte desestímulo à investigação.

Adorno afirma que a maioria dos casos é amparada por testemunhas, que acabam sumindo. Esse sumiço se explica pela lei do silêncio que impera nos bairros pobres e sem o amparo do estado:

- Grande parte das provas é testemunhal, não se recolhem provas técnicas e muitas vezes as provas técnicas não são o que nós vemos aí em "Lei e Ordem". A testemunha é uma figura que desaparece, se sente ameaçada.

O pesquisador lembra que, embora o perfil da criminalidade tenha mudado, "o sistema de justiça continuou a operar como operava 20, 40 anos atrás":

- A Justiça não é igual para todos. As pessoas ficam muito descrentes. As famílias pobres, que não têm condições de buscar a segurança privada, se apoiam nos poderosos do bairro. Então, vai depender das milícias, das lideranças do crime organizado, o que é grave.

Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, defende as metas do Enasp, mas critica um eventual arquivamento indiscriminado dos casos.

- O arquivamento revela a deficiência não da Meta 2, mas do modelo de investigação. É importante fazer com que a investigação seja feita. Não cabe só à polícia o papel de má nessa história, se o MP (Ministério Público) não for fundo, a Meta 2 vira procedimento administrativo.

Coordenador da meta do Enasp em São Paulo, o promotor Fernando Pastorello Kfouri nega que os promotores estejam sob pressão para avaliar os inquéritos rapidamente e afirma que o não cumprimento da meta não resultará em punição. Kfouri diz que não há intenção de rever os casos arquivados:

- Os promotores têm independência, e os juízes confirmam esses arquivamentos. A Meta 2 é de conscientização e de priorização dos casos anteriores a 2007. Quanto mais antigo o inquérito, menor a chance de um desfecho positivo.

Kfouri admite que há mais arquivamentos que processos:

- Se arquiva mais do que se denuncia. Mas esses homicídios são crimes pelos quais é mais difícil se chegar à autoria.

O promotor Francisco Cembranelli, que ganhou notoriedade com a riqueza das provas técnicas no caso da menina Isabella Nardoni, afirma que a maioria dos arquivamentos é por indeterminação da autoria do crime.

- Precisamos avançar bastante na perícia técnica. O que se viu naquele caso (Isabella) não é o habitual - admite ele, para quem "um nível tão alto de arquivamento é preocupante": - Toda vez que se arquiva um inquérito, deixa-se impune o autor daquele crime.