Título: Sob nosso olhar, montanha de cadáveres
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 17/09/2011, O País, p. 20

Inquérito de 14 anos sobre assassinato fica sem investigação e simboliza arquivamento em massa de ações no país

Nos corredores da polícia e do Ministério Público do Rio, é possível que ninguém saiba quem foi Edson Paula dos Santos e, muito menos, quem teria motivos para assassiná-lo. Seu caso, contudo, é um símbolo dos inquéritos que aguardam na fila da Meta 2, programa lançado este ano pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para a conclusão das investigações de homicídios ocorridas no país até 2007.

Desde que Edson foi morto, em fevereiro de 1997, em Madureira, o inquérito sobre o crime recebeu 14 despachos de dez promotores diferentes, concedendo prazos de 90 a 180 dias à polícia. Esses despachos, quase todos no mesmo padrão, somam um total de 1.710 dias de prazo, durante o qual os investigadores não encontraram, sequer, uma só pista sobre os criminosos.

Para cumprir a Meta 2 até dezembro, promotores fluminenses arquivaram, em apenas quatro meses (de abril a julho), 6.447 inquéritos de homicídios dolosos, como revelou reportagem do GLOBO publicada no dia 4. O número, que representa 96% dos casos analisados no estado, é mais do que a metade de todos os arquivamentos do país relacionados à Meta 2.

A maior parte dos casos segue a lógica do inquérito sobre a morte de Edson Paula, que ainda está em aberto: muitas etiquetas, prazos generosos e quase nenhuma investigação. A polícia praticamente nada faz, além de carimbar também, pedindo mais tempo para investigações que nunca acontecem. Nos 14 despachos encontrados no inquérito, apenas dois cobram diligências policiais específicas. Os demais são genéricos, dando mais tempo à 29ª Delegacia Policial (Madureira), responsável pela investigação, para "realização de diligências e peças faltantes", "prosseguimento das investigações" ou "juntada de relatório conclusivo".

Embora os investigadores não tenham cumprido os pedidos do MP, somente um dos 10 promotores que assinaram os novos prazos se insurgiu contra o descaso. Foi a promotora Cristiane Campos da Paz, que em despacho no dia 8 de outubro do ano passado escreveu à mão: "Fato grave sem qualquer diligência. Devolvo os autos à DP, por 90 dias, para oitivas de parentes da vítima". Antes dela, os colegas limitaram-se a carimbar prazos sem notar que a polícia nem sequer tinha feito o básico: ouvir a família da vítima.

Apenas 3% dos inquéritos da Meta 2 no Rio produziram denúncias contra os suspeitos. O arquivamento em massa do restante abriu uma polêmica no MP. Em carta aberta distribuída aos colegas, com o título de "Sob nosso olhar, uma montanha de cadáveres", o procurador Luiz Roberto Saraiva Salgado sustenta que "em cada dez homicídios, nove sequer são investigados com eficiência, mas, de tempos em tempos, somos convocados a sepultá-los com mutirões de arquivamentos, sem que isso corresponda a uma real mudança na qualidade das investigações ulteriores".

Apesar de reconhecer que o Ministério Público "tem pecado na forma de trabalhar", Luiz Roberto sustenta que a instituição não é a única responsável pelo problema.

- A polícia sempre fez o seu trabalho muito mal. Então, arquiva-se para dar a ela a oportunidade de trabalhar melhor nos inquéritos novos. Mas nada muda. Ela continua trabalhando mal - disse.

Para o procurador, o MP precisa de uma dose de coragem para cumprir o papel constitucional de exercer o controle externo da atividade policial.

Parte dos arquivamentos está sendo pedida antes da prescrição de 20 anos, pois os promotores alegam que, passado certo tempo sem que a polícia tenha feito algo, fica impossível chegar aos culpados. Nesse caso, o principal motivo do encerramento das investigações seria a própria ineficiência da polícia, e não, a iniciativa do MP.

- Isso não pode ser usado como justificativa. O Ministério Público tem sido omisso no dever constitucional de fazer o controle externo da atividade policial. Se a polícia falha, é nossa obrigação cobrar a correção do erro - lamenta o promotor Ricardo Zouein, de Conceição de Macabu, no Rio.

Zouein disse que foi punido por ficar por muito tempo com processos cíveis em seu poder, aguardando despacho:

- Expliquei que isso só aconteceu porque, ao contrário de muita gente, que apenas carimba, eu perdi muito tempo estudando inquéritos policiais. Precisei de três horas para ler um deles e dar um despacho. Não consegui fazer tudo ao mesmo tempo.

Um despacho específico, solicitando uma perícia ou um depoimento importante, como Zuein defende, contraria o que ficou conhecido no Ministério Público como "despacho etiquetão". A prática foi aplicada no inquérito sobre a morte de Edson Paula, no qual pelo menos sete, dos dez promotores encarregados, apenas repetiram um texto padrão, contribuindo para o "passeio" do caso entre o MP e a delegacia até o arquivamento.

Em nota divulgada no início do mês, o procurador-geral de Justiça, Cláudio Lopes, garantiu que o MP fluminense não pratica a política do arquivamento em massa, pois o objetivo é o da elucidação dos casos, razão pela qual teria ocorrido aumento das denúncias com a Meta 2. Ele lembrou também que a grande maioria dos arquivamentos solicitados até aqui foi submetida à chancela e aprovada pelo Judiciário.