Título: Crer para ver
Autor: Valente, Gabriela; Ribeiro, Fabiana
Fonte: O Globo, 30/09/2011, Economia, p. 27

"Todos somos capazes de acreditar no que sabemos ser falso, e, quando finalmente os acontecimentos provam que estávamos errados, reinterpretamos os fatos despudoradamente para mostrar nossos acertos. Intelectualmente, é possível continuar assim indefinidamente; o único problema é que mais cedo ou mais tarde uma crença falsa esbarra na dura realidade, geralmente em algum campo de batalha..." (George Orwell - 1946)

A citação foi usada em um excelente livro de dois psicólogos americanos, Carol Travis e Elliot Aronson, intitulado "Erros foram cometidos (mas não por mim) ? Por que justificamos crenças falsas, decisões erradas e atos nocivos". Talvez devesse ser leitura obrigatória para todos os gestores de política econômica, sobretudo aqui no Brasil, onde hoje predomina o famoso "sapato alto", aquele clima de "já ganhou" que muitas vezes antecede os grandes fracassos.

A julgar pelas manchetes dos jornais, a equipe econômica retornou triunfante das reuniões anuais do FMI e do Banco Mundial. "Está aí o agravamento da crise internacional, conforme alertamos"; esse é o recado passado nas várias declarações, tanto do ministro Guido Mantega, quanto do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini. Estão certos. E errados.

A crise de fato se intensificou nos últimos meses. Mas, ao contrário de 2008, dessa vez não é a paralisia do crédito que assusta os mercados, e sim a inércia resultante da ostensiva batalha política que tomou conta das economias maduras. Nos EUA, já não há mais nenhuma gota de bom senso no debate macroeconômico. O calendário político se apoderou das discussões sobre os rumos da economia, descambando em uma troca de acusações entre republicanos e democratas, extremamente destrutiva para a confiança dos consumidores, dos empresários, dos mercados. Diz o ditado que semear vento não dá boa coisa. A tempestade está nos dados e indicadores desalentadores e na constatação de que já não há mais instrumentos para resgatar a atividade. Ou melhor, os instrumentos até existem, mas a vontade política se foi. A atitude dos políticos americanos é dramática, shakesperiana: "Presunçosos e cheios de ira, em uma fúria surda como o mar, apressada como o fogo".

Se nos EUA a batalha que gera a paralisia é a disputa presidencial de 2012, na Europa a luta é por... o que mesmo? Salvar o euro? Salvar a Grécia? Proteger o contribuinte alemão? Resguardar o sistema bancário dos países do núcleo da eurozona? Os líderes europeus ainda não decidiram, e esse é o problema. Não há "solução" palatável para a crise europeia, pois o estancamento da sangria nos mercados passa, necessariamente, pelo socorro bancário, sobretudo com a perspectiva de uma iminente moratória grega.

Ou seja, é preciso dar bilhões, talvez trilhões, de euros para os bancos da região, expostos às dívidas soberanas de países insolventes e ilíquidos, enquanto a população é massacrada por arrochos fiscais cada vez mais asfixiantes, taxas de desemprego astronômicas e pela absoluta falta de perspectiva para o futuro. Parece uma guerra. De certo modo, é.

Quando as nossas autoridades previram a paralisia que prejudicaria o crescimento mundial, estavam corretas. Porém erraram onde ela se manifestaria. Não é (ainda?) nos mercados de crédito, que, mal ou bem, continuam funcionando, afastando a possibilidade de uma ruptura como a que derrubou a atividade global em 2008. A paralisia está nos sistemas políticos, cujas ramificações, embora mais difíceis de mapear, não impedem o dia a dia das economias - enquanto os políticos brigam, as pessoas vão ao supermercado, as empresas conduzem seus negócios, os bancos emprestam para alguns e deixam de financiar outros. É um estado muito diferente da paralisia do crédito, onde desaparecem os recursos para efetuar as transações mais mundanas.

Enquanto isso, a verdadeira batalha brasileira é ignorada. A inflação sobe. Importantes categorias, como os metalúrgicos e os bancários, demandam reajustes salariais que certamente se refletirão nos preços futuros. O câmbio se desvaloriza, adicionando às pressões sobre os custos.

E o governo? O governo quer reduzir ainda mais os juros. Impõe medidas protecionistas de improviso que certamente não ajudarão o cenário de inflação. Acha que a economia mundial mergulhará em uma profunda recessão que reduzirá drasticamente a inflação brasileira. Essa é a crença falsa. A dura realidade está nos índices de preços. E no cotidiano das pessoas.

MONICA BAUMGARTEN DE BOLLE é economista, professora da PUC-RJ e diretora do IEPE/Casa das Garças