Título: Direito irrenunciável
Autor: Piovesan, Flávia
Fonte: O Globo, 22/09/2011, Opinião, p. 7

Em regime de urgência, a Câmara dos Deputados apreciará o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, com a finalidade de elucidar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Caberá à Comissão promover o esclarecimento circunstanciado de casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, identificando e tornando públicos as estruturas, os locais e as instituições envolvidas.

Em 2009, o Programa Nacional de Direitos Humanos III ineditamente estabeleceu a adoção de uma Comissão Nacional de Verdade, visando a investigar casos de violação de direitos humanos do período ditatorial. A proposta, contudo, foi alvo de acirrada polêmica, fruto da tensão intragovernamental a respeito do tema. De um lado, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos sustentavam o absoluto apoio à proposta, em nome do direito à verdade e à memória; por outro, o Ministério da Defesa a acusava de "revanchista", o que culminou, inclusive, com a exoneração do general chefe do departamento do Exército, por ter se referido à "comissão da calúnia", em 2010.

Pela primeira vez, a proposta conta hoje com o apoio do Ministério da Defesa, tendo o aval dos comandantes das três forças. Em julho, o Ministério da Justiça garantiu a um grupo de 12 familiares de mortos e desaparecidos políticos o acesso irrestrito a todos os documentos do Arquivo Nacional.

A esta nova conjuntura nacional adicione-se a histórica decisão da Corte Interamericana, que, no final de 2010, condenou o Brasil no caso relativo ao desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 70 (caso Gomes Lund e outros versus Brasil). Para a Corte as disposições da lei de anistia de 1979 são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e a punição dos responsáveis.

Esta decisão endossa a relevante jurisprudência da Corte sobre a matéria. No caso Barrios Altos versus Peru (2001), a Corte considerou que leis de anistia perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma direta afronta à Convenção Americana. As leis de anistia configurariam um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária. No caso Almonacid Arellano versus Chile (2006), a Corte decidiu pela invalidade do decreto-lei 2.191/78 da era Pinochet, por implicar a denegação de justiça às vítimas e por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos. No caso La Cantuta versus Peru (2006), sustentou a Corte que "o aparato estatal foi indevidamente utilizado para cometer crimes de Estado, para, depois, encobrir tais crimes e manter seus agentes impunes. O jus cogens resiste aos crimes de Estado, impondo-lhe sanções".

Neste contexto, a instituição da Comissão da Verdade simbolizará um extraordinário avanço na experiência brasileira, ao consagrar o direito à memória e à verdade, permitindo a reconstrução histórica de graves casos de violações de direitos humanos. Para a Comissão Interamericana "toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram cometidos, a fim de evitar que estes atos voltem a ocorrer no futuro".

Diversamente dos demais países da região, como conclui Anthony Pereira, "a justiça de transição no Brasil foi mínima. Nenhuma Comissão da Verdade foi até então instalada, nenhum dirigente do regime militar foi levado a julgamento e não houve reformas significativas nas Forças Armadas ou no Poder Judiciário". No Brasil tão somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, mediante a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos pela lei nº 9.140 de 1995 e da Comissão de Anistia pela lei nº 10.559 de 2002.

Sob a ótica republicana e democrática, assegurar o direito à memória, à verdade e à justiça é condição essencial para fortalecer o estado de direito, a democracia e o regime de direitos humanos no Brasil.

FLÁVIA PIOVESAN é procuradora do estado de São Paulo e professora da PUC/SP.