Título: Desordem ameaça a Brasília de Lúcio Costa
Autor: Brígido, Carolina
Fonte: O Globo, 02/10/2011, O País, p. 15

Patrimônio Mundial, capital pode perder título; recomendações listadas pela Unesco em 2001 não foram cumpridas

BRASÍLIA. Em 1987, o governo do Distrito Federal determinou, por decreto, a preservação do conjunto urbanístico de Brasília. No mesmo ano, a Unesco inscreveu a cidade na Lista do Patrimônio Mundial. Em 1990, Brasília também foi tombada por lei federal. Apesar de tantas proteções à obra de Lúcio Costa, muita coisa mudou ao longo dos últimos anos. Hoje, o título concedido pela Unesco está ameaçado.

- Se não forem tomadas medidas a curto e médio prazo, o título da Unesco estará ameaçado. Estamos vivendo na corda bamba - disse o superintendente do Iphan em Brasília, Alfredo Gastal.

Em 2001, uma equipe da Unesco visitou Brasília e fez 20 recomendações para preservação do patrimônio. Segundo a arquiteta e urbanista Vera Ramos, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, 19 permanecem desrespeitadas. Todo ano, a agência das Nações Unidas reforça as notificações. No documento deste ano, a Unesco apontou preocupações.

Uma delas é a forma de ocupação da orla do Lago Paranoá. A área não tem destinação residencial, mas apartamentos foram construídos como se fossem hotéis, próximos ao Palácio da Alvorada. A Unesco também apontou a ocupação do passeio público e de áreas verdes por estabelecimentos comerciais do bairro da Asa Sul. Ainda foi mencionado o crescimento desordenado da Vila Planalto, uma área habitacional sem regulamentação entre o Congresso Nacional e o Alvorada, residência oficial da presidente da República.

Cemitério deu lugar a quadras residenciais

Construído na década de 1990, o Setor Sudoeste foi previsto para ter oito quadras. Hoje, conta com 16. Há planos para ampliar ainda mais o bairro. Um novo bairro Setor Noroeste está sendo construído. A previsão do urbanista era de dez quadras e um cemitério. O governo baniu o cemitério e planeja construir 22 quadras. O Ministério Público local tem tentado impedir os planos na Justiça. O argumento é o de que não há capacidade de fornecimento de água para mais moradores em Brasília.

Consultor da Unesco, o arquiteto e urbanista francês Raul Pastrana comandou a vistoria feita em Brasília em 2001. Em 2010, ele retornou à cidade e ficou indignado com o que encontrou. Em junho deste ano, divulgou um texto denunciando as deformações e defendendo que seja contida a pressão imobiliária sobre as áreas preservadas do Plano Piloto.

Para Pastrana, "a cidade se degrada". No texto, ele lembra que o projeto de Brasília constitui harmonia ímpar entre áreas vazias e áreas construídas. Mas os empresários têm difundido a ideia de que espaço livre nada mais é que a possibilidade de edificações. "Não se pode aceitar que os empresários imobiliários continuem ocupando impunemente vastas áreas às quais Lúcio Costa chamou de escala bucólica do Plano Piloto".

Para Vera Ramos, a causa das desfigurações é a excessiva concentração de empregos e serviços na área tombada. Hoje, moram em Brasília cerca de 350 mil pessoas. No entanto, os mais de 2 milhões de moradores do DF frequentam diariamente a área tombada. A cidade foi planejada para 500 mil habitantes.

- Com 51 anos, Brasília apresenta problemas de cidades com 500 anos - alerta a arquiteta.

Um dos projetos do governo local em prol da manutenção do patrimônio tombado é o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. Uma empresa privada foi contratada para realizar estudos preliminares. No diagnóstico, vários problemas foram apontados - a maioria na mesma linha dos documentos da Unesco.

Em determinado trecho, o estudo diz que arranha-céus em bairros vizinhos à área tombada afetam negativamente a imagem de Brasília. "O rompimento (da paisagem) mais flagrante e contundente é constatado, a sudoeste, com a presença ameaçadora de massa de edificações das Águas Claras, em uma escala até então desconhecida no DF, com alturas impensáveis e inadequadas", diz o texto.

O documento foi submetido a uma consulta pública. Misteriosamente, o trecho veemente não foi divulgado. Questionado pelo Ministério Público local sobre a mudança, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Geraldo Magela, esclareceu, em novo documento, que a parte suprimida "não se mostrou suficientemente fundamentada e/ou se mostrou inadequada às orientações da política de desenvolvimento urbano do DF".