Título: Respeito à gestante
Autor:
Fonte: O Globo, 17/10/2011, Opinião, p. 6

TEMA EM DISCUSSÃO: Interrupção da gravidez em casos de anencefalia

Os desfalques no plenário do Supremo Tribunal Federal (a ministra Ellen Gracie, que se aposentou, e o ministro Joaquim Barbosa, com problemas de saúde) tiraram da pauta imediata um dos mais polêmicos temas à espera de decisão da Corte. Trata-se da descriminalização de aborto de fetos com anencefalia (genericamente má-formação do cérebro, ou por definição inexistência de abóbada craniana e dos hemisférios cerebrais). Previa-se que a questão seria definitivamente debatida e votada na agenda de agosto, mas, em razão da carga de controvérsias que o assunto encerra, o STF só deve analisá-la quando o quadro de ministros estiver completo.

É compreensível que seja assim com assunto tão polêmico. Afinal, o tema ocupa a pauta do tribunal desde 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde entrou com uma ação na Corte requerendo autorização legal, em todo o país, para a interrupção de gravidez nesses casos. Na época, o ministro Marco Aurélio Mello chegou a conceder uma liminar favorável ao pedido, cassada em seguida para que o tribunal analisasse em definitivo o pedido. Mas o mais importante na decisão do Supremo de esperar pela totalidade do seus membros para se posicionar é que está em questão um assunto delicado, na fronteira entre ética, religião, saúde e deveres de um Estado laico. Após tantos anos de debates entre os que defendem esse tipo de aborto e aqueles que são contra, é recomendável a prudência.

O ministro Marco Aurélio, relator da ação, já tornou pública sua posição favorável à interrupção da gravidez nesses casos, com a inclusão no Código Penal de mais uma exceção para a lei permitir a interrupção terapêutica da gestação (atualmente, a legislação admite o aborto em casos de estupro ou quando a gestação representa risco de vida para a grávida). Deve-se respeitar, na discussão, os aspectos subjetivos (religião, moral, ética etc) que estão na base da argumentação daqueles que são contra a contracepção, mesmo as de ordem médica. Mas há um ponto crucial do qual o debate não pode passar ao largo: a medicina já provou que não há a menor possibilidade de vida futura nos casos de anencefalia.

Quem nasce com esse tipo de má-formação tem uma sobrevida curta, quase sempre de algumas horas. Ademais, há base legal para a aceitação do aborto nessas circunstâncias, como lembra o relator da ação: "O Código Penal viabiliza a interrupção terapêutica da gravidez quando há risco para a mulher. O risco de vida não é uma questão relacionada apenas à integridade física, mas à saúde num sentido mais amplo. A gravidez de um feto anencefálico traz danos irreversíveis à mulher tanto do ponto de vista físico quanto psicológico da gestante".

A prudência tem marcado a ação do STF nesse tema. Como no julgamento que resultou na aprovação das pesquisas com células-tronco, outro tema com delicadas implicações nas áreas da ética, da religião e da saúde, o tribunal promoveu discussões com personalidades e entidades contrárias e favoráveis à descriminalização. Por fim, mas sem dúvida de grande relevância, deve-se frisar que, mesmo aprovando o aborto nos casos de anencefalia, a Corte deixará que a decisão sobre a interrupção da gravidez seja sempre da mãe. Ou seja, ela terá total liberdade de escolha, à luz de suas convicções sociais ou levando em conta aspectos da própria saúde. É um respeito que se deve a um direito inegociável da gestante.