Título: Outra etapa da luta por uma nova Líbia
Autor:
Fonte: O Globo, 21/10/2011, Opinião, p. 6
Com a eliminação de Muamar Kadafi, começa uma nova era para a Líbia. Até agora, o grande objetivo dos rebeldes do Conselho Nacional Transitório (CNT) era localizar o ditador e pôr fim à encarniçada resistência que algumas tropas fiéis ainda ofereciam. A rebelião começou em fevereiro, Kadafi fugiu de Trípoli no final de agosto, e o cerco a Sirte, sua cidade natal, durou mais de dois meses. A batalha da Líbia é a mais sangrenta da Primavera Árabe, que ganhou este nome devido à deposição menos brutal dos ditadores da Tunísia e do Egito. Kadafi cumpriu o que prometera: resistir até o fim - e assim cobriu a Líbia de sangue.
Ontem foi dia de júbilo no país pela morte do ditador que ficou 42 anos no poder. A nova fase que hoje se inicia é delicadíssima para o CNT, que terá de evitar a desintegração nacional e abrir caminho para a construção de instituições democráticas; combater o sectarismo tribal e religioso; e, entre outros desafios, retomar a produção de petróleo. Imagine-se isso numa nação que viveu 42 anos num regime que fez questão de não criar (ou de destruir) as instituições. Kadafi, o líder máximo, sequer tinha um cargo formal.
Durante anos, ele engabelou os líbios com o "Livro Verde", lançado nos anos 70, no qual apresentava sua alternativa ao socialismo e ao capitalismo, combinada com aspectos do islamismo. Em 1977, criou o conceito de "Estado das massas", em que o poder seria exercido através de milhares de comitês populares. Mas, na prática, tornou-se mesmo um ditador cruel que durante anos apoiou o terrorismo internacional, o que transformou a Líbia num Estado pária.
Nos últimos anos, fez inúmeras concessões ao Ocidente, pagou indenizações por atentados, abortou o programa nuclear e vinha conseguindo sua reinserção na comunidade global, até ser pego no contrapé pela Primavera Árabe.
O grande desafio do CNT será impedir sua própria fragmentação política, pois se trata de uma frente mais ou menos caótica, unida pela necessidade de derrubar Muamar Kadafi. Uma de suas promessas é, após a queda de Sirte, trabalhar para que os líbios possam ter eleições em oito meses. Muito do seu êxito dependerá da continuação do apoio ocidental - a decisão de autorizar bombardeios da Otan às forças de Kadafi foi determinante para a derrota do ex-líder. Mesmo em tempos de crise, o Ocidente precisará manter os cofres abertos para a reconstrução líbia.
O fim do regime de Kadafi aumenta a pressão sobre dois outros ditadores árabes que ainda resistem à abertura política - Ali Abdullah Saleh, do Iêmen, e Bashar Assad, da Síria. O espaço de manobra dos dois encolherá ainda mais.
A nova face do mundo árabe, embora ainda careça de nitidez, poderá abrir novas perspectivas na região. Israel, até agora a única democracia real no Oriente Médio, poderá ganhar a companhia de outras. Até recentemente, o Estado judeu se escorava nos regimes autoritários, como o egípcio, capaz de manter as massas árabes sob controle. Mas o pragmatismo levou-o, por exemplo, a negociar a libertação de presos com o arqui-inimigo Hamas. Certamente será mais produtivo e legítimo falar com governos árabes de democracia para democracia. É o que se espera.