Título: Caminho sem recuo
Autor:
Fonte: O Globo, 03/11/2011, Opinião, p. 6

TEMA EM DISCUSSÃO: Controle de armamentos no país

Há considerações de toda ordem contra o desarmamento civil do país. Elas se apoiam em raciocínios de um arco que se abre da ideologia à defesa da indústria de fabricação de armas. Contra ideias argumenta-se com contraditos, terreno da paixão. Já os fatos lidam com resultados objetivos. É este, sem dúvida, o caminho mais indicado para a discussão sobre a necessidade ou não de o Estado controlar a circulação de armamento e de limitar o seu uso a agentes legalmente ligados à segurança da sociedade (bem como, em casos restritos, a profissionais que, por força de suas atribuições, têm assegurado o direito à autodefesa). Porque é em números e estatísticas, dados bem objetivos, que se assentam a defesa das ações de recolhimento voluntário de armas e as campanhas que pregam a pacificação social.

A primeira Campanha de Desarmamento, instituída a partir da adoção do Estatuto do Desarmamento (2003), tirou de circulação mais de 400 mil armas, até outubro de 2005. Foi incontestável o impacto sobre os índices de criminalidade dessa primeira investida contra o armamentismo indiscriminado. Segundo o Ministério da Saúde, entre 2003 e 2006 houve uma queda de 17% no número de mortes por armas de fogo em todo o país. Somente em 2004 estimou-se que mais de 3 mil vidas tenham sido poupadas. É um dado que precisa ser avaliado não só pelo ângulo do combate à violência, mas também da saúde pública (o SUS deixou de gastar no período R$93 milhões em internações de potenciais vítimas de ferimentos a bala) e pelo viés social (a quantidade de famílias que deixaram de chorar a perda de parentes). A correlação foi semelhante nas outras duas campanhas que se seguiram.

Mas, apesar das ações diretas de desarmamento e da vigência do Estatuto, em números absolutos o perfil da violência decorrente da criminalidade armada ainda assusta o país. O Brasil, com 34,3 mil homicídios por ano, indicador aterrorizante até para nações em guerra, é o campeão mundial de mortes por armas de fogo, diz o Ministério da Justiça. Isso porque não basta tentar demover os cidadãos a entregar suas armas, por mais crucial que seja essa questão no combate à violência armada, e adotar uma legislação, por mais avançada que seja (caso do Estatuto), sem fazê-la vigorar na prática via operações de fiscalização, campanhas desarmamentistas e outras iniciativas. Há, ainda, providências inadiáveis que precisam se juntar aos passos já dados - como aumentar o rigor do controle de fronteiras, por onde passa boa parte do arsenal que abastece quadrilhas do crime organizado, depuração de organismos policiais comprovadamente contaminados pela promiscuidade com o crime, maior rigor da Justiça com a aplicação das restrições e das punições previstas no Estatuto etc.

No plebiscito de 2005, rejeitada a proibição da venda de armas de fogo (decisão soberana da maioria dos cidadãos), perdeu-se uma grande oportunidade de ampliar o alcance do Estatuto do Desarmamento. Uma das faturas desse equívoco ficou registrada, por exemplo, num documento da CPI do Tráfico de Armas da Câmara dos Deputados: no Estado do Rio, 86% do armamento usado por criminosos saem de lojas legalmente estabelecidas. Não há razão para duvidar que esta seja a realidade em todo o país. Há, portanto, desafios inescapáveis no front da guerra contra os armamentos que cevam a criminalidade e a violência, dela decorrente ou não. Trata-se de contencioso social que pressupõe não só ações tópicas, mas providências estratégicas reunidas numa permanente política de Estado.