Título: Ex-guerrilheiro contra o aborto
Autor: Salinas, Carlos
Fonte: O Globo, 04/11/2011, O Mundo, p. 30

De olho no voto cristão, Ortega enaltece gravidez de alto risco de menina estuprada

ORTEGA NUMA missa no domingo: voto católico

MANÁGUA. Os nicaraguenses costumavam conhecer a longínqua aldeia de Walpa Siksa somente pelas escaramuças do Exército contra as redes de tráfico de drogas. A aldeia, habitada pelos índios miskitos, voltou às primeiras páginas com um drama que tem sido explorado eleitoralmente pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), o antigo movimento guerrilheiro convertido em partido. Trata-se de uma menina índia de 12 anos que engravidou após um estupro. Apesar de ter enfrentado risco de pré-eclampsia e hipertensão, as autoridades se negaram a permitir o aborto terapêutico, uma prática legalizada em 98% dos países e convertida em delito na Nicarágua em 2006. A menina conseguiu dar à luz na segunda-feira, e o nascimento tem sido usado pelo governo de Daniel Ortega, que tenta a reeleição no domingo.

— É um milagre. Um sinal de Deus — afirmou a primeira-dama Rosario Murillo.

As TVs oficiais mostraram imagens da pequena mãe e do bebê, e o caso reacendeu o debate sobre o aborto terapêutico, penalizado durante a campanha que levou Ortega ao poder. Na época, deputados da FSLN e da direita se uniram para derrubar o artigo do Código Penal que permitia o aborto em caso de risco de vida da mãe. O pacto teria sido decisivo para conquistar o voto católico e eleger Ortega. Agora, organizações feministas criticam duramente a manipulação das imagens da jovem mãe, enquanto meios de comunicação afins à FSLN fazem campanha “a favor da vida”.

Médicos citados pela imprensa local informaram que a gravidez era arriscada. Ainda assim, a menina teve um bebê de 2,2 quilos e que, segundo o hospital, está estável. A medida foi elogiada por católicos e evangélicos.

Desde 1893, a lei estabelecia a interrupção assistida, com o aval de três médicos, desde que a vida da mãe corresse risco ou se ela tivesse sofrido danos psicológicos por engravidar devido ao estupro. Com a reforma, o Congresso impôs penas de quatro a oito anos a quem praticar o aborto. Grupos afirmam que mais de 30 mulheres morreram desde então por problemas na gravidez.

Uma pesquisa feita em setembro mostrou que três em cada quatro entrevistados acham que a lei deve mudar, sobretudo num país em que casos de estupro de menores de idade são comuns. Segundo organizações feministas, em 2010 ocorreram 1.200 estupros. A própria Rosario Murillo protagonizou um escândalo deflagrado em 1998 após sua filha, Zoilamérica Narváez, acusar o padrasto, Ortega, de estupro.