Título: O recado da DRU
Autor: Velloso, Raul
Fonte: O Globo, 14/11/2011, Opinião, p. 7
Segundo especulou um conceituado jornal paulista, a DRU - Desvinculação de Receitas da União, que torna de uso livre parcela de 20% de grande parte das receitas da União - teria sido desenvolvida "pela tecnocracia nacional a partir de estudos do FMI", mas perdeu o sentido original. Só se justificaria sua prorrogação, na hipótese maquiavélica, formulada por um crítico do governo, de "que está no horizonte a recriação da CPMF ou o aumento de outra contribuição". Se não, por que desvincular 20% do orçamento social, se algo parecido com essa parcela retornaria depois, pelo aumento dos gastos, sob a forma de "recursos livres"? A não ser que o governo estivesse pensando em adicionar nova receita - da qual, então, se liberaria parcela adicional de 20% de seus ingressos, para qualquer uso.
Com muitos anos de vivência e estudos na área, devo dizer, primeiro, que o FMI não teve nada a ver com o assunto. A especulação em torno da DRU é de quem não viveu intramuros o processo de sua criação. Às vésperas do lançamento do Plano Real, fui eu quem desenvolveu a ideia de um mecanismo de desvinculação de receitas, chamado à época de "fundo de estabilização". Em seguida, apresentei-a ao então ministro da Fazenda, FHC, que a defendeu junto ao Executivo e ao Congresso.
Além disso, não consigo comprar a teoria conspiratória de que o governo quer prorrogar a DRU para depois recriar a CPMF (ou algo do tipo) e "ganhar" uma receita extra de 20% do que entrar a mais. Por vários motivos, mas um deles, e o governo sabe disso, é que cabe primeiro "combinar com os russos" - a sociedade brasileira dificilmente engolirá novo aumento expressivo da carga tributária sem estarmos à beira do precipício (algo hoje completamente descartado).
Um senador, então aliado do governo, me estimulou, na presença de amigo comum, a encontrar uma solução para o seguinte problema que tirava o sono de FHC. Sua equipe dizia que o Plano Real estava pronto, mas faltava um sinal forte na área fiscal, para não repetir o fracasso dos planos de estabilização anteriores. Daí imaginei que o sinal teria de ser a demonstração de que o orçamento pós-plano, superenrijecido pelas "vinculações de receita", não mais deveria depender da inflação elevada para se ajustar à realidade das receitas escassas. Se não, logo a inflação precisaria voltar. Antes, as majoritárias receitas "vinculadas" eram distribuídas às várias áreas cativas no orçamento, e sobrava pouco para as demais finalidades, inclusive o pagamento de parcela do serviço da dívida (superávit primário). Para aumentar essa sobra, o Tesouro segurava a liberação de certos gastos até o segundo semestre, e a corrosão inflacionária fazia o trabalho de cortar o valor real de certos gastos.
Diante da óbvia inviabilidade política de mexer nas vinculações de receitas constitucionais individualmente, sugeri um mecanismo provisório que "desvinculasse" um percentual fixo de todas, o maior possível, partindo de que o efeito líquido seria positivo. Nessas condições, facilitaria a aprovação no Congresso. E, na sua abrangência inicial, seria possível redistribuir receitas efetivamente para finalidades que, no processo anterior, só poderiam ser contempladas com a ajuda da inflação.
Sabia que, aos poucos, os lobbies setoriais tentariam fugir da aplicação da DRU, e que receitas antes desvinculáveis poderiam desaparecer, como no caso da CPMF. Por isso, os governos deveriam a seguir se empenhar numa solução permanente, algo que até agora não ocorreu. Mesmo sem os ganhos líquidos de receita com a DRU, previstos na justificativa do governo, fico imaginando a dúvida que deve ter surgido na reunião de cúpula que decidiu pelo empenho na aprovação da DRU. E se, em momento de crise internacional, os mercados "lessem" o abandono da DRU pelo governo como mais um sinal de desarranjo fiscal, frente às iniciativas de "contabilidade criativa" não muito bem recebidas nos últimos anos?
O mesmo raciocínio vale para o atual empenho governamental na aprovação da previdência complementar dos servidores, que resultou originalmente também de uma sugestão minha, introduzida com a ajuda de um ministro tucano, no dia da votação da Emenda 20/1998 na CCR do Senado, que aprovou a reforma previdenciária do governo FHC, assunto para outra coluna. Por maior que seja a oposição dos sindicatos de servidores (e do próprio Tesouro, pelos gastos adicionais), o governo sabe quão importante será o sinal, para efeito do equilíbrio fiscal de longo prazo, da aprovação da nova sistemática.
Por último, como justificar o veto de Lula à extinção do "fator previdenciário" tão defendida pelos mesmos sindicatos? Lula sabia (e Dilma sabe hoje) que o sinal seria péssimo, mesmo que o "fator" fosse substituído por algo parecido. Seria outro sinal de mudança da antiga postura rumo ao equilíbrio fiscal de longo prazo.
Em suma, o governo está certo em evitar a desfiguração das conquistas da área fiscal dos últimos anos. Só falta arregaçar as mangas e completar as reformas.
RAUL VELLOSO é economista.