Título: Histórias privadas
Autor: Abramo, Claudio Weber
Fonte: Correio Braziliense, 30/08/2009, Opinião, p. 29

Diretor executivo da Transparência Brasil

A praxe brasileira quando da eclosão de alguma crise é a sua desinflação. Para isso contribuem não apenas aqueles que têm interesse em fazer a coisa desaparecer como, igualmente, os que têm interesse oposto e muitos daqueles que observam de fora.

Emitem-se nuvens de informação e desinformação que tendem a transformar o tema eventual numa sopa ininteligível. Com o tempo, o cansaço vence e o assunto é esquecido.

Isso tem a consequência de manter misteriosas as causas da crise. Como estas não são examinadas, torna-se impossível corrigi-las para evitar a repetição futura de consequências semelhantes. É para onde parece encaminhar-se o caso da Receita Federal.

A Receita é organismo fundamental para o funcionamento da União. Da eficiência da atuação dessa repartição pública depende a capacidade de custeio e de investimento de toda a esfera federal.

Se uma gestão pautada pelo profissionalismo e pela isenção política é fundamental para que qualquer órgão público cumpra sua função de servir ao público, isso é redobradamente exigível na Receita. Problemas que a afetem não são relacionados apenas ao governo, mas ao Estado brasileiro. Tendo isso em vista, e mesmo considerando-se a tendência nacional em direção à pizzificação de tudo, surpreende a ausência de preocupação do Congresso Nacional em relação ao que aconteceu e está acontecendo com a Receita. Das questões relacionadas ao caso que têm sido veiculadas (nunca se sabe com que grau de veracidade, o que é parte integrante do problema), algumas exigem esclarecimento especial.

Em primeiro lugar, como é que se formulam e se executam as políticas gerenciais do órgão? Qual é o mecanismo que leva a Receita a agir deste ou daquele modo? Onde as políticas adotadas são consignadas formalmente? Onde se pode encontrar alguma explicação sobre se a Receita passou ou não a mirar preferencialmente os grandes contribuintes (ou qualquer outra política) e onde é que se encontram eventuais contraordens em relação a qualquer política anteriormente adotada?

Na ausência dessas consignações, o público fica a ver navios em relação ao que as diversas partes alegam. Uns dizem que a ex-secretária caiu porque teria havido discordância em relação a uma alegada política de mirar os grandes contribuintes. Outros afirmam que não foi isso, mas outra coisa. Como dirimir a dúvida?

Se não existe processo organizado de definição de políticas e se estas não são explicitadas em documentos, isso é assunto de interesse público de primeira grandeza, pois a alternativa é que não exista realmente processo decisório e que as decisões sejam atingidas por deliberações que permanecem restritas a indivíduos.

Nesse caso, a história fiscal brasileira se reduziria a histórias de relações privadas. A alguém ocorre que tal ou qual prioridade deve ser adotada, conversa-se com dois ou três e está feito. É assim mesmo que funciona?

Um segundo assunto diz respeito ao modo como se nomeiam pessoas para ocupar os cargos de responsabilidade na estrutura na repartição. Há concurso interno? Se não há, por que não há? Quais são os mecanismos de avaliação de desempenho dos funcionários do órgão? Ou será que todo mundo é sempre promovido por antiguidade? (É claro que o mesmo vale para todo o resto da administração.)

Qual espaço deliberativo se atribui aos sindicatos de auditores, de analistas, ou sejam quais forem? Faz algum sentido admitir-se que uma repartição pública seja dirigida por pessoas escolhidas por aqueles que serão seus subordinados?

Ainda no capítulo das nomeações e demissões, por que a ex-secretária foi nomeada e por que seu antecessor e ela própria foram demitidos? Se houve motivos técnicos, quais foram eles? Onde estão os números e a argumentação? Se existem números e argumentação, por que não são apresentados de forma estruturada? Afinal, é tudo irracional ou há alguma racionalidade nisso tudo?

Mais: por que se instalou uma situação em que dezenas de funcionários graduados decidiram afastar-se? Se devemos acreditar na afirmação do ministro da Fazenda de que as exonerações que se têm noticiado são ¿normais¿, como é possível que tal coisa seja ¿normal¿?

Aspectos secundários da crise da Receita são muito menos relevantes, embora tenham interesse num sentido menos estrutural (encontrou-se a ex-secretária com a ministra da Casa Civil ou não se encontrou, ocorreram ou não ocorreram entrechoques relacionados à tributação da Petrobras?).

O mais relevante são questões relativas ao modo como o Estado é gerido. Apresso-me a esclarecer que a opacidade, a irracionalidade e a arbitrariedade nas decisões relativas ao gerenciamento do Estado brasileiro não foram inauguradas pelo atual governo. Estão aí há muito tempo, sendo replicadas e pioradas nos estados e municípios.