Título: Mudanças na medicina do poder
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 06/11/2011, O País, p. 11

A rapidez e a transparência nas informações sobre o diagnóstico de câncer na laringe do ex-presidente Lula definem um padrão de relacionamento entre o poder e a medicina. A construção da moldura desse comportamento remonta à crise médico-política de 1985 - tema de documentário ("Tancredo, a travessia") do cineasta Silvio Tendler, em exibição no Rio e em São Paulo.

Começou na noite de 12 de março, quando Renault Ribeiro, diretor do Serviço Médico da Câmara, atendeu um telefonema de Aécio Neves, neto e então secretário particular de Tancredo Neves.

Aécio contou que o presidente eleito, de 75 anos, estava prostrado, com febre e dores. Faltavam apenas 60 horas para Tancredo entrar no Palácio do Planalto como o primeiro presidente civil, depois de 21 anos de ditadura.

De manhã, o médico Ribeiro resolveu ser o porta-voz de "boas" notícias: anunciou que Tancredo estava "bem de saúde". Foi atropelado pelos fatos - como outros 32 médicos nos 38 dias seguintes.

Em menos de 24 horas, o eleito foi exposto em cirurgia diante de uma plateia de políticos, com mulheres e assessores. "Ele morreu cirúrgica e hemorragicamente em Brasília e foi enterrado clinicamente em São Paulo" - resume Luis Mir, historiador, no livro "O paciente", a mais completa devassa já feita sobre esse caso.

Desde então, aperfeiçoam-se as regras. Assim com foi com Ulysses Guimarães, Antonio Carlos Magalhães, Sérgio Motta, José Alencar e Dilma Rousseff, em 2009. O prontuário médico de cada um é indissociável de sua história política.

Foi exatamente por essa razão que, em junho, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, recusou o convite de Lula para tratamento de câncer no Sírio-Libanês, em São Paulo. Chávez exigiu dois andares para sua comitiva e controle absoluto sobre boletins médicos. Aos 90 anos, a instituição preferiu não arriscar sua reputação.

Ele recorreu a Cuba, onde até a tábua de marés pode ser um segredo. E, até hoje, os venezuelanos não sabem qual tipo de câncer seu presidente tem. Muito menos suas chances reais de sobrevivência. Detalhe: sábado passado, Chávez soube da doença de Lula por um boletim do Sírio-Libanês.