Título: Os desafios a partir da Rocinha
Autor:
Fonte: O Globo, 15/11/2011, Opinião, p. 6

O Estado cumpriu com elogiável eficiência a missão de resgatar a Rocinha da tirania dos traficantes. Sem disparar um tiro, sem enfrentar resistências naquela que, até a madrugada de domingo, era a maior favela ainda sob o jugo do tráfico no Rio de Janeiro, as forças integradas de segurança subiram o morro (ocupando também o Vidigal e a Chácara do Céu), preparando o terreno para a pacificação de uma comunidade onde mora uma população de cerca de 70 mil pessoas, superior à de municípios como Saquarema e Seropédica. Do ponto de vista policial-militar, o sucesso da ação está fora de questionamento. A exemplo do que ocorreu ano passado no Complexo do Alemão, a integração entre polícias do estado e forças federais foi fundamental para a operação, bem como as manobras de inteligência que a antecederam. Cumpre agora tornar irreversível a retomada do complexo da Rocinha. Isso implica não só mirar o futuro, mas também jogar luzes sobre o rescaldo ainda não suficientemente destrinchado do tempo decorrido entre a prisão do chefe do tráfico local, o Nem, e a ocupação propriamente dita. É crucial que as autoridades de segurança se debrucem na análise de emblemáticos movimentos que marcaram esse curto período da semana passada.

A começar pelo episódio da prisão de Nem, em que policiais civis, entre eles um delegado, quiseram tirar o traficante da guarda dos PMs do Batalhão de Choque, que honradamente não aceitaram ser subornados pelo bandido, e levá-lo à delegacia da Gávea. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, estranhou e concordou, no "Bom Dia Brasil" de ontem, ser necessário esclarecer as circunstâncias da divergência. A merecer também investigação mais aprofundada está a declaração do ex-chefe do tráfico na Rocinha de que metade do faturamento do comércio de drogas destinava-se ao pagamento de propinas a policiais. Trata-se de cristalina evidência - mais uma - das relações promíscuas entre o crime e a banda podre das polícias, a ponta de um fio que pode levar ao aprofundamento da faxina ética nos órgãos de segurança.

Há ainda por esquadrinhar o claro esquema montado no "asfalto" de proteção ao crime. No caso de Nem, é sintomático que, ao ser preso, o traficante estivesse acompanhado por três advogados. Isso abre outra linha de investigação, paralela à da banda podre: até que ponto a rede de apoio ao tráfico fora das favelas arregimenta profissionais que, se valendo de prerrogativas do ofício, agem insidiosamente dentro das instituições em benefício de seus cliente (ou patrões) criminosos? Por fim, observe-se que, mesmo com a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora, restarão, por óbvio, outras formas de atuação do tráfico. É preocupante, por exemplo, o esquema que a facção do traficante Fernandinho Beira-Mar estaria montando, como sinalizam as investigações que se seguiram à morte de Marcelinho Niterói, braço direito de Beira-Mar, para integrar o Brasil a uma rede multinacional de tráfico. Só mesmo o aprofundamento da integração entre as diversas esferas do poder público será capaz de se contrapor a este upgrade na criminalidade.

As UPPs, cruciais para uma política de segurança que contabiliza resultados positivos, são passo inicial de um projeto amplo. Na Rocinha e em outras áreas pacificadas, o caminho está aberto para a "invasão social" do Estado. Esta também não pode falhar.