Título: Ulysses, o jurila e os Três Patetas
Autor: Moreno, Jorge Bastos
Fonte: O Globo, 20/11/2011, O País, p. 12

Coube ao jornalista Carlos Chagas, logo no início do governo Sarney, desvendar o grande mistério que até hoje provoca discussões jurídicas no país: por que Sarney, e não meu marido, assumiu a Presidência da República, com o impedimento de Tancredo Neves?

Foi num almoço na casa do nosso amigo Afrânio Nabuco, em Brasília, ao qual Sarney chegou atrasado, vindo de uma inauguração em Goiás, que o jornalista, puxando Ulysses para um canto, perguntou baixinho, suavemente, quase sussurando:

- Agora que tudo já passou - e veja a cara do Sarney, todo feliz ali ao lado dos ministros militares -, diga aqui para nós, doutor Ulysses, por que o senhor não assumiu a Presidência?

Ulysses olha para os lados, como se estivesse preocupado de alguém ouvir aquela conversa, e responde quase que no mesmo tom da pergunta:

- Porque o meu Pontes de Miranda me cutucava com a sua espada, dizendo: "Não é você, é o Sarney! É o Sarney! É o Sarney!".

A sorte de Ulysses é que o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército escolhido por Tancredo, até hoje interpreta a frase do meu marido como elogio.

A única pessoa que, até então, sabia da conversa "constitucional" entre o pobre advogado formado nas Arcadas do Largo São Francisco e o general-jurista era eu.

Antimilitarismo às claras Meu marido nunca gostou dos militares, no que, aliás, sempre foi muito bem correspondido

Naquela fatídica noite da internação do Tancredo, meu marido, que era o presidente da Câmara, o então presidente do Senado, Humberto Lucena, o senador Fernando Henrique Cardoso e o próprio general Leônidas deixaram o hospital escondidos e foram bater à porta da casa do então ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Leitão de Abreu. Naquela conversa, já explorada e contada em prosas e versos, selou-se o destino de Sarney e, consequentemente, o de meu marido.

Claro que não dormi naquela noite. Ulysses chegou com muita fome e perguntou o que tínhamos para o jantar. Não tínhamos nada, absolutamente nada. Estávamos em dias de gala: jantares e almoços formais, com a chegada de chefes de Estado para a posse.

Lembrei-me que havia um bacalhau na geladeira. Numa das raras vezes vi Ulysses recusar comida:

- Bacalhau, não, Mora. A última vez que eu comi, eu consegui dormir, mas o bacalhau, não.

Optou por uma xícara de chá. Acho que estava ainda sugestionado pela internação do amigo, que nem diagnóstico tinha.

- Mora, o Laviola, mordomo de Tancredo, me contou que ele come até três mangas à noite. E só consegue dormir depois de tomar um copo de leite quente!

Para quem come feijoada na madrugada, era o roto falando do esfarrapado. Meu marido, enquanto tomava o chá, foi me contando tudo o que acontecera aquela noite, principalmente sua conversa com o "Pontes de Miranda".

E eu perguntei:

- E a conversa com Leitão?

Ulysses me conta que o chefe da Casa Civil de Figueiredo também achava que era ele e não Sarney que deveria assumir. Mas, em algum momento da conversa, percebia algo estranho no olhar do ministro, o que o assustava muito.

- Mora, o Leitão me olhava de um jeito esquisito. O seu discurso me era favorável, mas seus olhos, não!

(Como já disse aqui, de olhar meu marido entende).

Ah, se eu soubesse que a minha resposta iria fazer com que Ulysses deixasse a xícara de chá cair sobre o tapete que ganhei da minha amiga Maria da Glória Archer, juro que eu não teria dito o que disse:

- Você se lembra daquele jantar na casa da Vera Brant, quando você disse que Pedro Aleixo só chamava o Leitão de Abreu de "jurila", por ter ele assessorado a Junta Militar?

Tentando me ajudar a limpar o tapete apenas com um gesto de intenção, Ulysses, finalmente, vê a ficha cair:

- Eu contei uma piada. Nunca neguei a competência do Leitão. Sempre o respeitei.

Eu, ainda debutante em Brasília, já aprendera os códigos da corte, mais até que meu marido, que ajudou a criá-la:

- Ulysses, o poder não tem parede. É como dizem nossos colunistas sociais: aqui, tudo se sabe e se vê, até o que não houve. O Marchezan (Nelson Marchezan) não veio te dizer que o Figueiredo te odeia porque você o chamou de analfabeto?

- Será que alguém foi me intrigar com o Leitão?

Claro que falaram. Na verdade, o problema do Leitão em relação ao meu marido tinha outras motivações: Ulysses sempre se referiu à Junta Militar como "Os Três Patetas". E o chefe da Junta foi o então ministro do Exército, Lyra Tavares, casado com Isolina, irmã do Leitão.

O pseudônimo de Lyra Tavares, que o fez entrar para a Academia Brasileira de Letras, era "Adelita".

Gente, o antimilitarismo do Ulysses é que sempre atrapalhou sua vida. Meu marido nunca gostou dos militares, no que, aliás, sempre foi muito bem correspondido.

Se Figueiredo não queria dar posse a Sarney por motivos domésticos da ditadura, os militares nunca aceitariam meu marido na Presidência da República. Não preciso me estender muito sobre isso. Basta citar os fatos.

Numa das comemorações do 31 de Março, Ulysses divulgou nota comparando o general Geisel a Idi Amim Dada, provocando enorme crise política. O MDB, basicamente, era divido entre "moderados" e "autênticos". Ulysses, ligado aos moderados, funcionava como pêndulo entre várias correntes que se abrigavam nas asas do bipartidarismo.

Naquele momento, todos os seus colegas da chamada "cúpula pessedista", que comandava o MDB, brigaram com ele. Amaral Peixoto e Tancredo Neves eram os mais exaltados. E foi aí que jogaram meu marido nos braços dos "autênticos", de onde ele nunca mais saiu.

Internamente, a ditadura entrou em crise também: cassar ou não cassar Ulysses. Era a velha história que já contei aqui: cassar meu marido seria um escândalo internacional. Os militares tentaram pegar Ulysses mais na frente, quando o processaram lá no "pacote de abril" de 1977.

Obsessivo na luta contra a ditadura Nem eu sabia que, de "bicho-papão", Ulysses se transformaria em "Papai Noel" dos militares.

Durante a Constituinte, numa entrevista em São Paulo, Ulysses voltou a se referir à Junta Militar como "aqueles Três Patetas". Acredito até que a entrevista em si poderia ter causado o mal-estar que causou, mas o bicho pegou mesmo foi na chegada a Brasília.

Vocês vão me permitir, antes, uma explicação: sem Ulysses, a Constituinte não funcionava. Quando, por um motivo ou outro, ele ficava ausente, ao reassumir a presidência era sempre aplaudido. Isso virou rotina. Só que, na volta da entrevista sobre "Os Três Patetas", Ulysses não foi aplaudido: foi ovacionado, quase carregado pelo plenário.

Mas meu marido ainda tinha contas a acertar. Ulysses era tão obsessivo na luta contra a ditadura que, para vocês terem uma ideia, logo após o encerramento da primeira campanha eleitoral de 89 para presidente da República, o "Jornal do Brasil" publicou uma pesquisa sobre o conteúdo dos discursos dos candidatos: Ulysses foi o que mais falou contra ditadura, torturas e mortes. Foi ele que encerrou a campanha eleitoral fazendo uma justa e linda homenagem àquele estudante da UnB, Honestino Guimarães. Lula, Brizola e Covas não sabiam quem tinha sido Honestino Guimarães. Nem eu. Ulysses sabia.

Mas foi na promulgação da Constituição que meu marido lavou a alma e provocou um delírio coletivo, ao esconjurar:

- Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!

E naquela festa de congraçamento nacional, do chamado reencontro do Estado com a Nação, Ulysses grita:

- A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram!

Ao ouvir isso, um dos chefes militares se retirou da solenidade. Foi um horror!

E, por uma dessas ironias do destino, vem agora o ex-senador Jarbas Passarinho, com a autoridade de ex-vice-presidente da Constituinte, revelar que, por um gesto impositivo, totalmente arbitrário e fora da lei, coube ao meu marido determinar o 13º salário dos militares. E a revelação vem com espanto do próprio Passarinho:

- É curioso que esse benefício tenha vindo do homem que chamou a Junta Militar de "Os três Patetas" e o presidente Geisel de "Idi Amim".

Nem eu sabia que, de "bicho-papão", Ulysses se transformaria em "Papai Noel" dos militares.