Título: O descaso cheira mal
Autor: D'Elia, Mirella
Fonte: Correio Braziliense, 16/08/2009, Brasil, p. 11

Brasileiros produzem 43 milhões de toneladas de lixo a cada ano, mas até hoje a sociedade não sabe ao certo o que fazer com os resíduos

Charlene quer ser cabeleireira, mas o sonho está distante: passa os dias catando sacos plásticos no Lixão

Há quase duas décadas, especialistas, parlamentares e empresários discutem o que fazer com o lixo produzido no Brasil. Sem sucesso. Enquanto isso, a montanha de sujeira não para de crescer. Diariamente, são recolhidas das casas e ruas das cidades de todo o país cerca de 150 mil toneladas de lixo ¿ 2,5 mil só no Distrito Federal. Ao todo, são 43 milhões de toneladas por ano coletadas no Brasil. Isso é a mesma coisa que encher (de lixo e não de torcedores) 43 estádios do Maracanã. Do gramado até a marquise superior. Um dado preocupante: praticamente a metade dessa sujeirada tem como destino lixões e aterros sanitários inadequados. São 67 mil toneladas diárias de detritos que colocam em risco o meio ambiente e a saúde dessa e das futuras gerações (veja quadro).

O Congresso Nacional debate a questão há 18 anos. Desde 1991, quando chegou à Casa o primeiro projeto abordando o tema (PL nº 203/91), mais de 100 propostas já foram apresentadas e anexadas ao texto inicial. Interesses divergentes inviabilizaram um avanço. A falta de um marco regulatório no setor provocou, de lá para cá, a multiplicação de leis estaduais. Há pelo menos 10 estados que aprovaram legislações próprias, de acordo com suas necessidades, mas ainda falta uma diretriz única. Agora, o impasse parece estar finalmente perto do fim. A Câmara se prepara para votar um projeto de lei (PL nº 1991/07), apresentado pelo Executivo, que cria a Política Nacional de Resíduos Sólidos. O nome pomposo traduz objetivos simples: ditar o que deve ser feito com o lixo brasileiro. E saber lidar com os impactos do acúmulo dele na natureza.

Relator do substitutivo apresentado ao projeto original do Executivo, o deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP) diz que a matéria seguirá para votação em plenário até o fim do ano. O fato é que o lixo pôs em lados opostos empresários e o governo, emperrando a discussão. Outros fatores, como o debate sobre o que fazer com pneus usados, também contribuíram para que a matéria não deslanchasse. ¿Muitas vezes, aqui na Câmara dos Deputados, o rabo abanou o cachorro¿, diz Jardim.

Tensão

Atualmente, o principal ponto de tensão é uma mudança proposta pelo relator, que incluiu seis segmentos no chamado sistema (1)de logística reversa. Empresários têm restrições à mudança. Depois de muita pressão, conseguiram deixar de fora da regra dois segmentos. Mas o governo quer que todo mundo tenha que seguir a regra. Apesar das opiniões conflitantes, o relator diz que há vontade política para buscar o consenso.

¿Já houve um amadurecimento. Os parlamentares perceberam que é importante tomar uma decisão e as próprias empresas que atuam de forma correta, sabem que precisam de uma legislação forte para que não haja concorrência desleal de outras ¿ que se lixam para a questão¿, defende. ¿A questão ambiental veio para ficar. Não há como pensar num modelo de desenvolvimento econômico sem ter essa questão como requisito fundamental¿, completa.

O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, está otimista: ¿Acho que estamos nos `finalmentes¿. Uma lei nacional é a fundamental para criar princípios¿. Minc é autor da lei de resíduos do Rio de Janeiro, um dos estados com regras próprias para tratar do lixo. Segundo o ministro, nos pontos em que não houver confronto com as regras federais, as leis estaduais continuarão valendo.

Para o diretor de ambiente urbano da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), Silvano Silvério da Costa, ¿já está passando da hora¿. ¿O país já tem maturidade suficiente para colocar em pé essa política.¿

1 - A arte de reaproveitar Adotado em vários países, o sistema de logística reversa obriga fabricantes a trazer de volta produtos comercializados para que sejam reaproveitados. Em caso de descarte, o meio ambiente não pode ser agredido. O relator da matéria, deputado Arnaldo Jardim, fez uma modificação no texto original do governo. Determinou que os segmentos de agrotóxicos, pilhas e baterias, lâmpadas fluorescentes, pneus, eletroeletrônicos e óleos lubrificantes teriam que seguir a regra. O governo queria que a norma fosse generalizada. Depois de muita discussão, dois setores (lâmpadas e eletroeletrônicos) ficaram de fora. Mas o relator diz que ainda pode haver mudanças no formato do projeto.

Perfil da sujeira

Há diversas categorias de lixo: o urbano, que é recolhido de casas e ruas; o industrial; o que sobra dos serviços de saúde e também o resultante da construção civil.

LIXO URBANO Gerado: 49 milhões de toneladas/ano Coletado: 43 milhões de toneladas/ano

LIXO INDUSTRIAL Gerado: 20 milhões de toneladas/ano (estimativa)

LIXO DA SAÚDE Coletado: 209 mil toneladas/ano

LIXO DA CONSTRUÇÃO CIVIL Gerado: 46 milhões de toneladas/ano (estimativa) Coletado: 23 milhões de toneladas/ano

Fonte: Ibge, Abetre, Abeltre

Rotina de 1,6 mil pessoas Cleide vai às montanhas de lixo diariamente há 30 anos: orgulho

Sem pensar duas vezes, Charlene Maria de Jesus admite: ¿Se pudesse escolher, seria cabeleireira¿. A convicção da jovem de 24 anos é fácil de compreender. Ela segue uma rotina de sujeira, mau cheiro e degradação. Poderia estar cercada por agradáveis odores de perfumes, xampus e cremes para o cabelo, característicos de qualquer salão de beleza. Mas a realidade é diferente. Casada, mãe de dois filhos, há quase um ano e meio passa os dias catando sacos plásticos ¿ ¿seda¿, no jargão dos catadores ¿ no Lixão da Estrutural. ¿Não acho impossível, mas isso está longe de acontecer para mim¿, diz, resignada. Os cabelos estão escondidos embaixo de uma touca de tricô. Vaidosa, usa longos brincos e um colar chamativo. Mas as roupas estão sujas e exalam o cheiro do lixo misturado ao gás metano que sai das montanhas de sujeira espalhadas por 176 hectares do Lixão.

A exemplo de Charlene, outras 1,6 mil pessoas acordam de madrugada todos os dias para ganhar a vida no Lixão. Catam de tudo: papel, garrafas pet, plástico, papelão. Bem perto dela, outra mulher se destaca no meio de um monte de homens. Aos 37 anos, Cleide Vaz da Silva frequenta as montanhas de lixo há três décadas. Já viu de tudo: crimes, fetos abandonados e acidentes. Aos 7 anos, já acompanhava o pai no serviço. Diz, com orgulho, que ele foi um dos fundadores do Lixão, que existe há 40 anos, bem perto do poder de Brasília. Cleide não tem vergonha do que faz. Com o dinheiro que consegue extrair da sujeira, sustenta três filhos. ¿Eles dizem que vão me tirar daqui.¿

O Governo do Distrito Federal (GDF) tenta acabar com o Lixão da Estrutural. Chamado de ¿aterro controlado¿, ele, na verdade, põe em risco o fornecimento de água a meio milhão de pessoas e fica perto do Parque Nacional de Brasília, importante área de preservação ambiental. Mas não vai ser fechado tão cedo. A desativação depende da construção de um aterro sanitário em Samambaia. A meta do governo é que a nova área fique pronta até o fim de 2010. O edital de licitação ainda não saiu ¿ o que, segundo o GDF, deve acontecer em 10 dias. ¿Não dá para ter um lugar como esse, com gente morrendo lá dentro¿, diz o secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do DF, Cassio Taniguchi. ¿Não pode a capital da República não ter um sistema decente de gestão de lixo¿, completa o presidente do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), Gustavo Souto Maior.

Enquanto o Lixão não fecha, Cleide e Charlene continuam seguindo a malcheirosa rotina de passar os dias no meio do lixo. Mas não abaixam a cabeça. ¿A gente trabalha aqui, mas não é lixo¿, diz Cleide. (MD)

E EU COM ISSO Você sabia que cada brasileiro produz, sozinho, quase um quilo de lixo por dia? Todos os dias, são recolhidas, no Brasil, 150 mil toneladas de sujeira. Esses detritos, tecnicamente chamados de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) são, na verdade, o lixo que sai das casas de todos os brasileiros e também é recolhido das ruas das cidades. Em 2007, mais da metade do lixo urbano foi parar em lixões ou aterros inadequados. Em 2008, o percentual caiu para 45%. Mas a construção de aterros sanitários ainda está abaixo do ideal. Enquanto isso, o meio ambiente corre riscos. ¿Só chegamos até a metade do caminho¿, avalia Diógenes Del Bel, diretor-presidente da Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre), que representa as empresas especializadas no tratamento e destinação de resíduos sólidos.

O número 45% Percentual de lixo urbano que foi parar em lixões e aterros inadequados em 2008