Título: Na crise, países precisam de gestos de grandeza
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Fonte: O Globo, 27/11/2011, Economia, p. 39
Ex-presidente da Argentina diz que "corralito" visava a proteger bancos, culpa EUA e FMI por colapso e critica Brasil
BUENOS AIRES. Há dez anos, o então presidente argentino Fernando de la Rúa (1999-2001) vivia o fim de seu governo, embora ainda faltassem dois anos para completar o mandato. Uma de suas últimas medidas - ele renunciou em 20 de dezembro de 2001 - foi o fatídico corralito, que, segundo ele, buscava concentrar nos bancos as operações financeiras e acalmar a situação do país. Num modesto escritório do Centro portenho, onde prepara sua defesa para enfrentar um julgamento por suposto pagamento de subornos no Congresso na sua gestão, De la Rúa disse ao GLOBO que os grandes responsáveis pela crise argentina de 2001 foram os EUA e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Depois de reclamar da falta de solidariedade do Brasil, ele assegurou que, "se tivessem nos dado 10% do que deram à Grécia, teríamos nos recuperado e evitado a crise política".
Janaína Figueiredo
O corralito é um trauma para muitos. O senhor sente culpa por tê-lo aplicado?
FERNANDO DE LA RÚA: Hoje as pessoas sabem que se tratou de uma crise financeira, como atualmente acontece em países como a Grécia. As crises financeiras estão acima da vontade de um governante.
Mas o senhor se considera responsável pela crise?
DE LA RÚA: A crise argentina foi provocada, principalmente, por um grave erro dos Estados Unidos, que tinha a chave do Fundo Monetário Internacional (FMI), e do então diretor-gerente deste, Horst Köhler, que estava irritado porque tínhamos anulado um contrato com a empresa alemã Siemens. Eles consideraram que era a situação ideal para se mostrarem enérgicos e castigarem um país que, segundo eles, tinha feito as coisas erradas. O interessante é que os que estavam contra a Argentina defendiam os financiamentos hipotecários que depois provocaram uma crise mundial. Alan Greenspan (então presidente do BC americano), que falava mal da Argentina, não via os problemas em seu próprio país.
Então, na sua opinião, os responsáveis são FMI e EUA?
DE LA RÚA: O maior erro deles foi não ter dado o apoio necessário à Argentina em um momento de recessão. Com ajuda, teríamos atravessado a crise. Seis meses depois de minha renúncia, o preço da soja começou a subir, e a situação da Argentina mudou. O FMI carrega essa culpa, por isso criou uma comissão para investigar a crise. Ele foi um elemento que desestabilizou e não cooperou. Se tivessem nos dado 10% do que deram à Grécia, teríamos nos recuperado e evitado a crise política.
Por que o senhor acredita que o FMI adotou essa posição?
DE LA RÚA: Eles estavam dispostos a nos abandonar, já que sua única preocupação na época era o Brasil, que recebeu créditos contingentes quando estava em situação similar à nossa. Lamento que na época o governo brasileiro não tenha sido solidário, já que não nos informou sobre esses créditos.
O senhor está criticando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
DE LA RÚA: Ele é um grande amigo e o compreendo, sua prioridade era cuidar do Brasil. Mas não nos contaram que estavam recebendo empréstimos especiais quando existia um enorme risco de crise na Argentina. Foi claro: abandonaram a Argentina e salvaram o Brasil, e tudo isso afetou a necessária solidariedade entre países vizinhos. Se tivéssemos sido avisados teríamos reagido. Mas, ao mesmo tempo, devo destacar que FH teve coragem de enfrentar o diretor-gerente do Fundo e defender nosso país.
FH foi o primeiro presidente estrangeiro a visitar a Argentina em 2002 e ofereceu-se para ajudar o país...
DE LA RÚA: FH esteve preocupado e me ajudou em todas as reuniões internacionais. Mas, num determinado momento, o Fundo disse ao Brasil que o ajudaria, mas que deixaria a Argentina despencar. Nesse momento, o Brasil ficou em silêncio, não recebemos a solidariedade esperada. Depois sim, é verdade, o ex-presidente brasileiro ajudou o governo (Eduardo) Duhalde.
Alguma autocrítica?
DE LA RÚA: Primeiro, não ter alcançado os objetivos de meu governo. Segundo, não ter conseguido estabelecer as mesmas relações com organismos e governos internacionais que o Brasil, que foi mais hábil.
O senhor lamenta ter aplicado o corralito?
DE LA RÚA: Antes de assumir eu temia uma corrida bancária, porque sabia do problema da dívida. Os capitais começaram a sair do país. O FMI nos negou um empréstimo. Já havíamos aplicado o plano do déficit zero, que foi duríssimo, e continuavam nos negando ajuda. Nosso plano de bancarização (assim foi apresentado o corralito) buscou frear a fuga de capitais e proteger os correntistas. Queríamos ordenar a situação dos bancos. Lembro-me que algumas emissoras de rádio diziam a seus ouvintes que fossem rapidamente aos bancos retirar o dinheiro porque ele acabaria. As pessoas corriam desesperadas. Quando explicamos que estávamos bancarizando a economia, que as pessoas podiam dispor de seus recursos com cheques ou cartão, todos entenderam. Mas precisávamos de um prazo para acalmar a situação. Se tivéssemos contado com a ajuda do Fundo, tudo teria sido diferente. Depois as pessoas protestaram quando Duhalde confiscou totalmente os depósitos.
Mas em dezembro de 2001 também houve panelaços...
DE LA RÚA: Sim, mas por razões políticas. Já estava em marcha uma conspiração para derrubar meu governo.
Quem estava por trás dessa suposta conspiração?
DE LA RÚA: Duhalde, que dois meses antes esteve na Espanha e disse que assumiria o governo argentino. Hoje todos sabemos o que aconteceu. Conclusão: em situações de crise, os países precisam de gestos de grandeza e patriotismo.