Título: Triângulo emergente
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 01/09/2009, Mundo, p. 22

Índia, Brasil e África do Sul costuram afinidades, trocam experiências e multiplicam o comércio. Ministro Celso Amorim recebe os colegas dos dois parceiros para preparar a próxima reunião entre os presidentes do grupo, no início de outubro

Em junho de 2003, o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, recebeu no Itamaraty os colegas Yashwant Sinha (Índia) e Nkosazana Dlamini-Zuma (África do Sul) para formalizar a criação do Fórum de Diálogo Ibas. Seis anos depois, Brasília novamente sediará o encontro entre chanceleres dos três países, para consolidar os avanços e traçar novas metas para o fórum que é, atualmente, a menina dos olhos da diplomacia multilateral do governo Lula. A evidente predileção pelo Ibas é explicada pelo fato de ter sido o primeiro ¿ e o mais bem-sucedido ¿ projeto da política Sul-Sul do Itamaraty. Entretanto, apesar de ter se tornado um fórum trilateral relativamente importante, seu alcance no cenário internacional ainda não vai muito além dos programas sociais financiados pelo Fundo Ibas.

Desde que foi lançada, a articulação conseguiu encaminhar diversos projetos internos que preveem troca de experiência sobre problemas comuns, como pobreza, evasão fiscal e falsificação de medicamentos. O interesse é por soluções consideradas bem-sucedidas em cada um dos países, como o Bolsa Família, cujo modelo os governos indiano e sul-africano já consideram copiar. No caso brasileiro, a busca é por conhecer mais, por exemplo, o modelo de administração pública ¿herdado dos ingleses e aplicado em países em desenvolvimento¿.

¿Conseguimos atingir uma intensidade boa de encontros nos grupos de trabalho, fomos juntos desenvolver parcerias até na Antártida. Mas há plataformas para projetos cada vez mais ousados¿, afirma o diretor do Departamento de Mecanismos Regionais do Itamaraty, embaixador Gilberto Moura. Uma das iniciativas que podem ser enquadradas como ¿ousadas¿ é a criação de um fundo de Ciência e Tecnologia, que terá investimento de US$ 1 milhão de cada país para o desenvolvimento de pesquisas conjuntas.

Na reunião de hoje, Amorim, o indiano S. M. Krishna e a sul-africana Maite Nkoana-Mashabane não só devem confirmar os avanços conseguidos nesses projetos ¿internos¿ do fórum, como vão pedir celeridade nos três programas tocados, hoje, com recursos do Fundo Ibas: a construção de um centro esportivo em Ramallah e a reconstrução de uma escola na Faixa de Gaza (ambos na Palestina) e a criação de um centro de referência no combate à Aids em Burundi (África). Os chanceleres também debaterão temas da agenda global, a fim de identificar semelhanças de posição entre os três governos, e preparar o terreno para a cúpula dos chefes de Estado do grupo, que se reunirá em Brasília, em 8 de outubro. ¿O Ibas tem a característica de lutar por posições no cenário internacional. Para isso, temos procurado, cada vez mais, constituir uma voz uníssona, mostrar que os Ibas falam juntos¿, explica Moura.

Fluidez Para o governo Lula, o fórum Índia-Brasil-África do Sul é um encontro feliz de ¿democracias vibrantes, com um estágio de desenvolvimento econômico semelhante e posições regionais muito parecidas¿. ¿É muito fácil de trabalhar com o Ibas, porque os três países têm visões de mundo muito próximas. O diálogo flui muito bem¿, disse ao Correio uma fonte do Itamaraty. Uma das provas da ¿sintonia¿, para a diplomacia brasileira, é que o fórum tem se mostrado resistente a mudanças de governo na África do Sul e na Índia ¿ a última teve quatro diferentes chanceleres nesse período.

Para o professor da Universidade de Brasília José Flávio Sombra Saraiva, no entanto, o Ibas tem ¿muito pouco a dar¿ daqui para frente. ¿É um fórum importante, mas que chegou no seu limite. Eles têm em comum o fato de terem algumas visões convergentes sobre o sistema internacional e serem gigantes regionais. Mas as políticas exteriores desses três países já têm agendas muito complexas, inclusive em suas regiões, que movem energia para o seu próprio entorno¿, afirma.

Inversão de rumo A atenção prioritária às relações com outros países emergentes e, em geral, com o mundo em desenvolvimento foi uma das marcas registradas do governo Lula em relação aos antecessores. Além do Fórum Ibas, essa orientação produziu a Cúpula América do Sul - Países Árabes, reunida em Brasília (2005) e Dubai (2009). Também se expressou no empenho do Planalto e do Itamaraty com o Mercosul, na criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e na realização, no fim de 2008, da Cúpula da América Latina e Caribe, primeiro encontro de líderes da região sem a presença de potências externas.

Relações desiguais

Se há uma sintonia evidente entre as três economias emergentes, que somam um PIB nominal superior a US$ 3,2 trilhões, é também verdade que os interesses de cada país nem sempre permitirão a Brasil, Índia e África do Sul ter uma ¿voz uníssona¿. Os dois primeiros, por exemplo, apesar de coincidirem na defesa da reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, pleiteam, cada um, o apoio de outros países para ocupar um assento permanente no órgão. Importantes produtoras de etanol de cana-de-açúcar, as duas nações em expansão disputam parceiros e mercados consumidores.

¿O primeiro-ministro indiano chegou a sublinhar, no primeiro encontro do Ibas, que os três países eram mais concorrentes do propriamente vocacionados à cooperação. Além disso, eles competem nos organismos internacionais, por ocupação de espaço¿, observa o professor da Universidade de Brasília (UnB) José Flávio Sombra Saraiva. O especialista, que dirige o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ibri), lembra ainda que, no comércio, a Índia é parceira preferencial dos Estados Unidos, o que, por vezes, se choca com os interesses brasileiros.

¿A Índia também é uma potência nuclear, o que torna seu status muito superior ao do Brasil e da África do Sul no que tange aos temas estratégicos globais¿, acrescenta. O próprio Itamaraty admite que há barreiras que o Ibas não pode transpor, mas argumenta que essa não é a intenção do bloco, que tem por fio condutor o diálogo. ¿Esse é um fórum de convergência. O que incomoda a um, nós não colocamos em discussão¿, afirma o embaixador Gilberto Moura.

Bilaterais Em um grupo de três importantes países, também é impossível desconsiderar o peso das relações bilaterais. No campo econômico, por exemplo, a disparidade é enorme: a balança comercial entre Índia e África do Sul, de cerca de US$ 7 bilhões, é equivalente a todo o volume de exportações e importações do Brasil com os dois países. ¿Índia e África do Sul têm uma relação histórica muito grande, um passado de migrações. Hoje, dos quase 48 milhões de habitantes da África do Sul, há quase 3 milhões de indianos. Portanto, é evidente que essa relação bilateral tende a prosperar mais¿, avalia. (IF)