Título: Anistia e desculpas nos 100 anos de Marighella
Autor: Roxo, Sérgio
Fonte: O Globo, 04/12/2011, O País, p. 10

Ex-guerrilheiro, considerado pela ditadura o inimigo número um, será homenageado pela Comissão de Anistia

SÃO PAULO. Considerado inimigo público número um da ditadura militar, o guerrilheiro Carlos Marighella será homenageado amanhã, dia do centenário de seu nascimento, pela Comissão de Anistia. A família dele receberá, em Salvador, cidade natal do ex-líder da Ação Libertadora Nacional (ALN) , o pedido formal de desculpas do Estado brasileiro por causa da perseguição política que sofreu ao longo de toda a vida.

Entre parentes e ex-companheiros, o evento, em que será concedida a anistia política ao guerrilheiro, é visto como símbolo de resgate de sua figura.

- Pode fazer com que novas gerações se interessem em conhecer a importância do Marighella ao país - diz Clara Charf, viúva do líder da ALN.

- É o coroamento de 40 anos de luta para fazer com que o país conheça uma figura que viveu condenada a um silêncio total por todo esse período - afirma Carlos Augusto Marighella, filho do guerrilheiro com Elza Sento Sé.

Filho afirma que imagem de Marighella foi destruída

Para Carlos Augusto, a ditadura militar teve a preocupação de destruir a imagem de seu pai.

- Não permitiram que a família tivesse o direito de sepultá-lo. Ele era apresentado como um facínora, um terrorista. O inimigo da pátria.

Sueli Bellato, uma das vice-presidentes da Comissão de Anistia, acredita que a concessão da anistia pode ajudar a sociedade a ter mais informações sobre o papel do guerrilheiro na História.

- A concessão da anistia traz a possibilidade, aos que não tiveram acesso na academia a esse período histórico, de saber o que aconteceu e reconhece qual foi a contribuição que pessoas como Marighella quiseram dar ao nosso país - afirma.

A homenagem acontecerá no Teatro Vila Velha, a partir das 15h. A família entrara com o pedido de anistia política neste ano, e o processo será julgado no evento. Não houve pedido de indenização. Na ocasião, também será lançado o Pró Memorial Marighella Vive, que irá reunir acervo sobre o ex-líder da ALN. Ainda em razão do centenário, no dia 15 dezembro ocorrerá um evento na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio. Vão participar também a OAB , o MST, o Grupo Tortura Nunca Mais, a Fundação Dinarco Reis (ligada ao PCB) e a Rede Democrática.

A ideia dos organizadores é dar início ao Ano Marighella, com atividades, palestras, debates e seminários pelo país. Sindicatos de professores também serão procurados para que a história do guerrilheiro seja levada à sala de aula.

No Rio, PCB concede medalha Dinarco Reis

Marighella deixou o partido por defender confronto armado

SÃO PAULO. No evento em homenagem a Carlos Marighella, previsto para o dia 15 no Rio, o PCB, partido com o qual o guerrilheiro rompeu em 1967 por defender a adoção do confronto armado contra a ditadura, vai entregar a medalha Dinarco Reis à família dele.

- Nós nos orgulhamos de ter tido Marighella em nossos quadros - diz Ivan Pinheiro, secretário-geral da legenda.

Durante o Estado Novo, Marighella ficou preso entre 1939 e 1945 por causa da militância no PCB. Antes da implantação do Estado Novo, mas já no governo Getulio Vargas, havia sido preso outras duas vezes. Anistiado, foi eleito deputado federal constituinte em 1945. Em 1948, no governo Eurico Gaspar Dutra, os comunistas foram cassados e ele voltou à clandestinidade.

O rompimento com o PCB, onde militava desde os anos 30, na Bahia, aconteceu após conferência de líderes de esquerda latino-americanos, em Cuba, para organizar a luta contra governos militares. Um telegrama do PCB desautorizou sua participação. Na volta ao Brasil, ele fundou a ALN e iniciou a luta armada.

Assalto ao trem pagador e manifesto na Rádio Nacional

Para Carlos Eugênio Paz, membro da ALN, as principais ações do grupo foram o assalto ao trem pagador, em São Paulo, e a tomada da antena da Rádio Nacional, em Diadema, para transmitir um manifesto. Marighella lançou, na época, o "Manual do guerrilheiro urbano". Em 1969, a ALN foi convidada pela Dissidência Comunista da Guanabara a sequestrar o embaixador americano Charles Burke Elbrick.

-- O Marighella era contra realizar o sequestro naquele momento. Considerava arriscado. Depois que houve o sequestro, divulgou apoio - lembra.

Os militares aceitaram a exigência de libertação de 15 presos políticos. Mas, após o fim do sequestro, em 6 de setembro, o cerco aos grupos guerrilheiros se intensificou.

Às 20h de 4 de novembro de 1969, Marighella foi à Alameda Casa Branca, nos Jardins, em São Paulo, se encontrar com dois frades dominicanos. A ordem apoiava a ALN. Mas os frades tinham sido presos três dias antes. No local do encontro, Marighella foi surpreendido pelo delegado Sergio Paranhos Fleury e morto com cinco tiros. O guerrilheiro e a mulher viviam no apartamento de um companheiro em São Paulo.

- O dono da casa tinha ficado de ir buscar Marighella. Mais ou menos 9h da noite, o companheiro entrou e eu disse: Cadê o Marighella? Aí, ele falou... - lembra a viúva Clara Charf, de 86 anos, bastante emocionada.

Clara conta que o marido manifestava a intenção de jamais se entregar caso apanhado e andava com duas cápsulas venenosas de cianureto.

- Ele não se entregaria nunca. Foi torturado várias vezes, achava que era impossível se deixar prender. Ele quase morreu em outras vezes.

"A democracia no Brasil é robusta"

Ex-ministro de FH, José Gregori é cotado para integrar a Comissão da Verdade

Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos no governo FH, o jurista José Gregori, de 81 anos, é um dos cotados para compor a Comissão da Verdade. Hoje secretário de Direitos Humanos de São Paulo, ele defende a Comissão, mas lembra que a Lei da Anistia não prevê punições e que a situação aqui é diferente da de outros países.

Tatiana Farah tatiana.farah@sp.oglobo.com.br

Quando estava em tramitação, o senhor chegou a chamar o projeto da Comissão da Verdade de uma "peça de ourivesaria". Ainda acredita nisso ou começa a ver o tema com alguma desconfiança?

JOSÉ GREGORI: Foi um grande marco democrático. Independentemente de se saber quais serão os resultados, o fato de ser um assunto tão delicado, de um tema que não cicatrizou totalmente no Brasil - que foi a ditadura militar -, ter conseguido que todos os partidos sentassem à mesa e concordassem com o projeto enviado pelo governo é um avanço democrático dos mais importantes. É uma prova de que a nossa democracia está ficando robusta.

A Comissão da Verdade é suficiente para cicatrizar feridas?

GREGORI: Acho que, se ela não viesse, a ferida ficaria mais exposta. Pelo simples fato de ter vindo, já melhorou a situação. Acho que a presidente Dilma tem tudo para acertar nos sete nomes de pessoas talhadas para desempenhar essa tarefa: trazer elementos para a História. Tenho confiança. Talvez a Comissão da Verdade não chegue a dizer, em um determinado episódio, tudo o que aconteceu, mas, daqui a dois anos, o historiador ou aquele que se interessar por aquele determinado episódio que a comissão estudou vai ter muito mais elementos do que tem hoje.

"A ONU não conhece nossas particularidades"

A ONU chegou a pedir ao Brasil a revogação da Lei da Anistia.O que achou?

GREGORI:A ONU não conhece as particularidades do que foi o processo de reconquista da democracia no Brasil. Do ponto de vista dos direitos humanos, a democracia brasileira tem pelo menos três vigas mestras. A primeira é a Lei da Anistia; a segunda, a política de direitos humanos pelo primeiro Plano Nacional dos Direitos Humanos; e, a terceira, é a Comissão da Verdade, pelo significado que tem de que, apesar das diferenças no Brasil, foi possível o consenso.

A responsabilização dos que cometeram crimes de tortura não é importante para a consolidação dessa democracia?

GREGORI: Tudo o que houve, mesmo antes da Comissão da Verdade, como a lei dos Desaparecidos Políticos, fizeram a nossa democracia ser robusta. Não precisou revogar a Lei da Anistia. Na Argentina e no Uruguai, revogaram. Tenho grande admiração pelos argentinos e uruguaios, mas me desculpem: a democracia do Brasil, sem essa revogação, dá de dez a zero.

Mas é com a impunidade que as famílias das vítimas mais se ressentem.

GREGORI: Nenhum desses que constam ter sido torturadores, de ter ofendido mais gritantemente os direitos humanos, voltaram a ser o que eram. Nenhum deles continuou no cargo em que estava. Eu mesmo, como ministro da Justiça, recebi a denúncia de que um diretor da Polícia Federal que tinha nomeado seria torturador, e o demiti em 48 horas.

O que falta para que as famílias das vítimas da ditadura sintam mais confiança?

GREGORI: A Comissão tem poderes de buscar informações, trazer à luz certos fatos que ainda não puderam ser totalmente esclarecidos. Mas ela não tem como missão deixar com que cada pessoa, que tem sua visão particularizada sobre os fatos pelos quais o país passou, fique satisfeita. Isso é um problema complexo, que não será uma medida legislativa que vai resolver. Ela não é uma panaceia.

O senhor vê algum risco de os militares se ofenderem?

GREGORI: As feridas ainda não cicatrizaram totalmente. Chegamos ao ponto marcante de ter a Comissão da Verdade. Agora, ela tem de ser conduzida com prudência. Não dá para pensar que o filho do (deputado Jair) Bolsonaro vá ser da comissão.

Qual é o maior desafio da Comissão?

GREGORI: Ser constituída por ato que deve ser de descortínio, de independência e de equilíbrio da presidente da República.

Mas o senhor será da Comissão? O que o ex-presidente Lula lhe falou?

GREGORI: Ser ou não ser da Comissão é exclusivo da presidente Dilma. Conversamos sobre o significado de se ter chegado à Comissão. Ele falou: "que bom que você chegou a uma coisa que tem a sua impressão digital nessa altura da vida".