Título: Discriminação e arbítrio no uso de algemas
Autor:
Fonte: O Globo, 15/12/2011, Opinião, p. 6

A Polícia Federal, a partir do primeiro governo Lula, realizou várias operações de repercussão. Batizadas por nomes criativos, as investidas policiais, sempre acompanhadas pela imprensa, convocada com antecedência, geravam imagens de impacto para o noticiário.

Raras operações não eram contra empresários acusados de sonegação ou de estar ligados a algum esquema de corrupção. Intencionalmente ou não, a linha de trabalho da PF conquistou apoio popular. Pessoas bem vestidas e algemadas pareciam reforçar a ideia de uma polícia de fato "republicana" - como costumava qualificar o então ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos -, um órgão público de Estado cumpridor da lei, blindado contra interferências políticas.

Não demorou para se detectarem os excessos. Um deles, a própria exposição de acusados como se já culpados fossem. Se a detenção conquistava grande destaque, o mesmo, é claro, não ocorria com o habeas corpus concedido pelo juiz, por considerar que o inquérito policial, de formulação precária, não justificava a prisão preventiva. Mas o show já havia sido dado.

O uso de algemas sem justificativa era constante. O desvio ficou evidente em pelo menos duas operações da PF em 2005: na sede da Daslu, à época grande e sofisticada loja em São Paulo, e para deter executivos e acionistas da Schincariol, fabricante de cerveja. Prisões foram feitas em dez estados, além de São Paulo e Rio de Janeiro. E era indiscutível que se abusara das algemas. As operações, contra sonegação, fizeram aumentar as críticas. Em algum momento, a própria PF anunciou a criação de normas de conduta, mas, em agosto de 2008, depois de detenções feitas na Operação Satiagraha, um festival de irregularidades, o Supremo Tribunal Federal baixou súmula para limitar o uso de algemas, punir abusos e exigir a justificativa, por escrito, da polícia, quando fossem utilizadas. A Corte foi levada a endurecer diante do caso de um preso acusado de homicídio ter comparecido ao tribunal do júri algemado. O STF anulou o julgamento.

Como mostrou reportagem de ontem do GLOBO, a súmula não "pegou", é letra morta, mesmo sendo "vinculante" - todas as instâncias inferiores da Justiça têm de obedecer a ela. Não é o que acontece. Há vários argumentos a favor da algema, inclusive o da proteção do próprio preso. Nos Estados Unidos, pelo menos em Nova York, nem Strauss-Kahn, ainda diretor-gerente do FMI, escapou delas. Mas, se a lei estabelece que cada caso é um caso e exige a explicação formal de por que o preso foi manietado, a regra tem de ser cumprida. Se não, cai-se num vácuo em que vale aquilo que decidir o policial. Dois exemplos recentes são esclarecedores do espaço existente para o desmando: enquanto Marcos Valério, do mensalão, foi detido sem ser algemado, William da Rocinha, acusado de conivência com o tráfico, apareceu para ser fotografado com argolas nos pulsos.

O comportamento dos policiais no caso de Marcos Valério, sempre envolvido em operações obscuras, foi correto. Por que não fizeram o mesmo com William, não conhecido por ser de "alta periculosidade"? Pelas explicações oficiais, deduz-se que não se cumpriu a súmula do STF, ou seja, não houve justificativa específica por escrito. É grande a tentação de se criticar a diferença de atitude da polícia nos dois casos pela discriminação social e racial. Mais um motivo para ser cumprida à risca a súmula do Supremo.