Título: Guilhotina moral para Chirac
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Fonte: O Globo, 16/12/2011, O Mundo, p. 45

Justiça condena ex-presidente à prisão por corrupção, mas saúde frágil suspende a pena

JACQUES CHIRAC: condenado a dois anos de prisão, o ex-presidente não cumprirá pena por conta de seus problemas de saúde

PARIS

Overedicto, histórico, foi anunciado na mesma sala onde Maria Antonieta, a mulher do rei Luís XVI, foi sentenciada à morte durante a Revolução Francesa. Antes de um tribunal declarar o ex-presidente Jacques Chirac, de 79 anos, culpado de desvio de verbas públicas e abuso de poder ontem, sentenciando-o a dois anos de prisão, apenas dois outros chefes de Estado franceses haviam sido condenados pela Justiça do país: Luís XVI e o marechal Philippe Pétain, que colaborou com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de os juízes terem optado pela suspensão condicional da pena devido à frágil saúde de Chirac — o que significa que ele não ficará preso — a notícia foi acolhida na França com surpresa. Enquanto os aliados do ex-presidente criticavam “uma decisão severa demais”, os socialistas aproveitaram para relançar o debate sobre a imunidade presidencial, a poucos meses das eleições.

— É uma decisão histórica, um gesto simbólico, mas poderoso, da independência do Judiciário — afirmou o advogado Pierre-François Divier, um dos responsáveis pela abertura do caso. — Sempre disseram que o homem estava muito velho, que um processo contra ele seria cruel, e uma ação contra um ex-chefe de Estado comprometeria a reputação da França. Mas estavam errrados. Na verdade, é um forte sinal (a outros políticos), mesmo que, para Chirac, seja humilhante.

A surpresa pela decisão foi ainda maior porque, em setembro, o procurador Michel Maes chegou a retirar as acusações contra Chirac. Mas os juízes levaram o caso adiante. Num comunicado, o ex-presidente, que acolheu o veredicto com serenidade, segundo seus advogados, afirmou que não irá recorrer da decisão, apesar de “contestar categoricamente o julgamento”. Ele negou ter cometido os crimes, mas afirmou que não dispõe das forças necessárias para uma nova batalha judicial. De acordo com um de seus advogados, Jean Veil, o ex-presidente ficou satisfeito pelo fato de o tribunal ter reconhecido ao menos que não houve nenhum enriquecimento pessoal no caso.

Réu se ausentou no julgamento

A condenação chega com mais de 15 anos de atraso, já que as acusações contra Chirac remontam aos anos 1990, quando ele foi prefeito de Paris. Na época, a prefeitura contratou com o consentimento de Chirac, segundo o tribunal, 19 funcionários-fantasmas que trabalhavam, na verdade, para o partido conservador RPR — que se transformou posteriormente na UMP, de Nicolas Sarkozy. Segundo os juízes, esse esquema, pelo qual foram condenadas ontem outras sete pessoas, custou aos cofres públicos o equivalente a 1,4 milhão. O atual chanceler, Alain Juppé, braço-direito de Chirac na Prefeitura de Paris, já havia sido condenado pelo mesmo caso em 2004, mas também não cumpriu pena.

Ontem, o candidato socialista à Presidência, François Hollande, criticou a demora da Justiça em punir Chirac, que se tornou presidente logo após deixar o cargo de prefeito, em 1995. Até 2007, enquanto esteve no poder, Chirac foi beneficiado pela imunidade presidencial, e não pôde ser julgado. Ao concluir seu segundo mandato, uma série de manobras de seus advogados retardaram ainda mais o processo.

— A Justiça venceu, e deveria vencer, para que não se instale um sentimento de impunidade. Mas venceu com tanto tempo de atraso que eu volto a uma questão importante, sobre o status penal do chefe de Estado — disse Hollande, atualmente favorito para as eleições do ano que vem. — Eu faria votar pelo Parlamento essa reforma para evitar que sejam necessários 15, 20 anos, para um presidente ser condenado.

As palavras de Hollande reacenderam a discussão sobre a imunidade presidencial, com especialistas na questão divergindo sobre as consequências para o país de uma reforma como esta. Enquanto alguns juristas acreditam que a Presidência não pode servir de escudo penal, outros argumentam que a reforma — defendida também pelo Partido Verde — poderia causar instabilidade na França.

— Tenho dificuldade de imaginar, dado o papel do presidente na nossa Constituição, que ele possa ser enviado ao tribunal sem provocar uma crise institucional — afirmou o professor de Direito Constitucional Didier Maus.

Durante todo o julgamento, Chirac não esteve presente. Seus advogados haviam pedido sua dispensa, afirmando que ele sofre de doença neurológica, tem “graves problemas de memória e comete importantes erros de juízo e raciocínio”. Foi evocando as condições de saúde do político que presidiu a França por 12 anos que a maior parte de seus aliados condenaram o veredicto. Ex-afilhado político de Chirac, Sarkozy se negou, por meio do porta-voz do Palácio do Eliseu, a comentar o caso. No Brasil, o premier François Fillon contemporizou:

— Estimo que essa decisão não vá alterar a relação pessoal que existe entre os franceses e Jacques Chirac.

Mas diversos membros da UMP fizeram duras críticas ao tribunal, chegando, inclusive, a chamar a decisão de uma condenação política.

— A sentença é lastimável e humilhante para Chirac — disse Jean-Pierre Dupont, deputado da UMP. — A condenação é apenas um espírito grosseiro de vingança política.

Na ausência de Chirac, sua filha adotiva, Anh Dao Traxel, compareceu ao tribunal, e lutava para conter as lágrimas após a decisão.

— O sistema de Justiça foi muito severo, mas é um sistema justo e independente. Para a família, é uma grande dor que devemos aceitar.