Título: Descaso com a música
Autor:
Fonte: O Globo, 16/12/2011, Opinião, p. 7

O anúncio da venda da EMI Music e da EMI Publishing para, respectivamente, Universal e Sony, representa mais um capítulo na história da derrocada da indústria da música como a conhecíamos. Sinal dos tempos, em breve poderemos ter apenas duas multinacionais da música e, em contrapartida, já existem mais de duzentas gravadoras independentes no Brasil, além de milhares de músicos e artistas tentando o seu lugar ao sol. Mas, se a música brasileira hoje não recebe mais os investimentos massivos provenientes dos lucros e isenções fiscais dessas multinacionais, se o produto físico já não vende na medida do investimento necessário à sua produção, se os canais de distribuição virtuais não remuneram o conteúdo ali distribuído como deveriam, estaria a música fadada definitivamente a se tornar mais uma das artes dependentes de fomento público? O setor musical precisa desemperrar os gargalos, que são muitos.

Tivemos uma vitória sem precedentes, conquistando na Câmara dos Deputados a aprovação da PEC da Música por 395 votos a 21, em primeiro turno, e 393 votos a 6 (com duas abstenções), em segundo turno. Ainda precisamos passar por 2 turnos no Senado. Estamos otimistas e aguardamos confirmação para o primeiro trimestre de 2012 dessa tão necessária desoneração fiscal no nosso setor. A PEC da Música trará fôlego renovado às gravadoras nacionais para continuarem investindo em música brasileira, e a entrada do ITunes poderá finalmente equilibrar as vendas de música digital no Brasil. Mas os gargalos não param por aí. Questões de direito são igualmente importantes. Quase 3 mil emissoras de rádio em todo o país estão inadimplentes com o pagamento de direitos autorais. Uma injeção de 30 milhões de reais que deixam de chegar a autores, produtores, músicos e intérpretes todos os anos.

Emissoras de rádio e TV são concessões públicas. É inadmissível que essas emissoras renovem, ano após ano, as suas concessões de funcionamento, estando em débito com a legislação autoral. Pior ainda o caso da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que desde a sua criação pelo Governo Federal jamais considerou em seu orçamento o pagamento de direitos autorais. A EBC se considera acima da lei e se recusa sequer a entrar em negociação. É o próprio poder público se autorizando a descumprir a lei.

Outro exemplo, o caso da Ancine, que toma do setor fonográfico tarifas altíssimas sobre seus DVDs musicais sem nada oferecer como contrapartida. Para a Ancine, o setor fonográfico só existe na hora de pagar a sua contribuição ao cinema. Não existe em seu cadastro referência ao produto musical e nem pode uma produtora fonográfica ser beneficiária dos editais da agência. Dentro da legislação brasileira, um tributo chamado "contribuição" deve ser revertido para o mesmo setor que contribuiu, mas a lei que constituiu a Ancine se ocupou de colocar audiovisual e videofonograma no mesmo barco, obrigando um setor em crise a financiar parte do outro. Sim, o cinema brasileiro precisa de fomento, mas neste momento a música brasileira também. Infelizmente o que se vê partindo do poder público é o descaso e uma sangria sem fim num mercado que precisa de espaço para reencontrar o caminho da autossuficiência que sempre trilhou.

LUCIANA PEGORER é presidente da Associação Brasileira de Música Independente.