Título: Jogo do bicho se conecta a outros crimes
Autor:
Fonte: O Globo, 17/12/2011, Opinião, p. 6

A imagem clássica de apontadores sentados em bancos e caixotes nas esquinas, anotando apostas em blocos toscos, ainda não é um anacronismo absoluto no jogo do bicho fluminense. Mas eles perdem terreno gradativamente, e num ritmo a cada dia mais intenso, para a tecnologia: a alta cúpula da contravenção do Rio de Janeiro investe pesadamente em máquinas de anotação eletrônica, bem como em aparelhos caça-níqueis e outros dispositivos, aperfeiçoando esquemas que são a razão de ser dos jogos de azar: abastecer o caixa dos “banqueiros” com somas bilionárias à base de fraudes e manipulações que tiram do apostador qualquer chance contra a “banca”.

Métodos conhecidos de ganhar dinheiro à custa da boa-fé alheia e personagens que ainda remetem ao passado misturando-se a novas tecnologias a serviço do engodo não são a única coisa que mudou no jogo do bicho nos últimos anos. A aliança dos grandes contraventores do Rio com grupos mafiosos da Rússia e de Israel, descoberta recentemente em operações da Polícia Federal, como revelou O GLOBO, comprova que também do ponto de vista “gerencial” os bicheiros fluminenses diversificam os negócios ilegais. Disso também é evidência a ligação dos chefões fluminenses com cassinos em países sul-americanos, parceria que ajuda a lastrear suas atividades internamente, em razão do aumento dos ganhos providos por esses novos mercados. De comum entre os dois tempos — o dos métodos artesanais de burla e o da informatização — permanece a inescapável realidade de que a contravenção é uma atividade que não se restringe a manipulação de apostas, grave por si só. Em seu rastro, contabilizam-se também homicídios, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e outros crimes contra a vida humana e a economia do país. A versão globalizada dos bicheiros apenas potencializa o perigo que eles representam para a sociedade — e cuja gravidade nem sempre é devidamente avaliada pelo poder público, não poucas vezes leniente com a proliferação de bancas de apostas, tíbio na repressão a máquinas caça-níqueis e cego diante do desembaraço com que “banqueiros” ostentam seu poder em instâncias da vida legal.

Um poder que também avança sobre a vida institucional, e, de forma ainda mais profunda, sobre os organismos de segurança, com a cooptação de agentes públicos incluídos na folha salarial da contravenção. Não à toa, a grande (e necessária, descontados alguns aspectos tão espalhafatosos quanto ineficazes) operação desfechada esta semana pela polícia fluminense para prender acusados de ligação com a máfia do bicho acabou não alcançando três dos grandes “banqueiros” com mandados de prisão decretados pela Justiça. É cristalina a evidência de que, mais uma vez, a ação vazou por canais que levam aos chefões contraventores.

Desses movimentos da contravenção, que passam por assassinatos, manipulação de apostas e graves ameaças contra a paz social, sobressai a constatação de que é insustentável a tese da legalização da jogatina. Seja pelo aspecto criminal, pelo viés legal ou do ponto de vista social, o jogo é uma atividade ligada a uma estrutura viciada, violenta e — comprova-se agora — dominada por máfias. Logo, longe dos interesses da sociedade.