Título: Apertando o cerco
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Fonte: O Globo, 21/12/2011, Opinião, p. 6

Na Argentina, a campanha do governo contra o livre exercício da opinião vai adquirindo contornos cada vez mais truculentos. O último episódio é a invasão das dependências da Cablevisión, a TV a cabo do grupo Clarín, para realizar "investigações".

Dezenas de investigadores entraram no prédio por ordem de um juiz de Mendoza, baseada em denúncia do grupo Vila-Manzano. Depois de três horas de "ocupação", saíram carregados de documentos, ante a perplexidade dos funcionários.

É o capítulo mais recente de uma relação turva entre o governo e os meios de comunicação. Quando o grupo Clarín e Néstor Kirchner ainda não estavam em guerra, a Cablevisión adquiriu, em dezembro de 2007, a Multicanal, e se transformou na maior operadora de TV a cabo da Argentina. A operação foi referendada por uma resolução da hoje todo-poderosa Secretaria de Comércio Interior, que já tinha como chefe o famoso Guillermo Moreno.

Dois anos depois, mudando o clima político, a secretaria de Moreno suspendeu provisoriamente a autorização de 2007; e em março de 2010 o Ministério da Economia, chefiado pelo agora vice-presidente Amado Boudou, revogou definitivamente a fusão.

Estas são as linhas gerais do caso; mas os detalhes da história são obscuros, quando não abertamente escandalosos.

A causa judicial para a intervenção tramita em Mendoza - onde a Cablevisión não tem nenhuma operadora. O objetivo da ação, movida pela Supercanal, coincide com o do governo, que decretou o fim da fusão. A resolução do governo pretende "evitar o exercício da concorrência desleal e o abuso de posição dominante no mercado por parte de Cablevisión". Mas o que fica evidente é o pacto entre o governo e o grupo rival da Cablevisión, que, alinhado ao sistema de divulgação do governo, é um dos principais beneficiários da propaganda oficial.

No começo deste mês, Cablevisión tinha denunciado à Autoridade Federal de Serviços Audiovisuais ter sido alvo de discriminação e fustigamento durante todo o ano de 2011, e objeto de 488 sanções.

A truculência de agora é quase igual à de setembro de 2009, quando a Administração Federal de Ingressos Públicos realizou uma operação que invadiu a Redação do "Clarín" e chegou, inclusive, a violar residências particulares de diretores do jornal.

Um detalhe do quadro atual é que a juíza Pura de Arrabal, em cujas mãos foi cair o processo, tem vínculos familiares com membros do grupo Vila-Manzano. O "Clarín" questionou a falta de imparcialidade, mas a Câmara federal de Mendoza confirmou a juíza no cargo.

Assim vai tomando corpo a política oficial para os meios de comunicação, explicitada sem muita cerimônia pela chefe de governo em seu discurso de posse. O kirchnerismo não admite controvérsias. Estende seu desejo de mando a todas as áreas - e um de seus últimos projetos diz respeito à revisão da própria história do país. Resta saber se essa "uniformização" de pensamento resistirá aos tempos difíceis que já batem à porta dos argentinos.