Título: Iraque de volta à oleocracia
Autor: Malkes, Renata
Fonte: O Globo, 18/12/2011, O Mundo, p. 48

Livre da ocupação dos EUA, país luta contra as diferenças para virar potência regional

renata.malkes@oglobo.com.br

Líderes mundiais gostam de recorrer ao adjetivo “histórico” para classificar algumas de suas manobras de Estado. Sem desmerecer a envolvente oratória do presidente dos Estados Unidos, foi a dura realidade que se desenha no Oriente Médio a responsável por salvar Barack Obama do clichê. Num patriótico discurso em Fort Bragg, na última quarta-feira, ele acertou ao chamar de histórica a retirada das tropas americanas do Iraque. À Casa Branca cabe, agora, no rastro da saída dos soldados, a inédita missão de criar elos amigáveis com um país sobre o qual jamais teve influência. Afinal, durante a Guerra Fria, os parceiros americanos no Golfo Pérsico eram as monarquias do Irã e da Arábia Saudita; o Iraque baathista alinhou-se à antiga União Soviética.

Já a lista de tarefas do primeiro governo soberano iraquiano pós-invasão é mais extensa. A infraestrutura sucateada sequer permite o fornecimento contínuo de energia elétrica à capital, Bagdá. Tensões entre sunitas e xiitas, além de árabes e curdos, tornam endêmicas a divisão e as instabilidades políticas. O Irã está à espreita, numa ofensiva por influência; a economia combalida e a corrupção questionam o caráter operativo das Forças Armadas, e o extremismo da al-Qaeda segue ativo. Mas não é só.

O ranking de corrupção da ONG alemã Transparência Internacional neste ano colocou o país num alarmante 175º lugar entre 182 avaliados (quanto mais perto do fim, mais corrupto é o país). E o premier Nuri al-Maliki comanda um Iraque dono da segunda maior reserva de petróleo do planeta — estimada em 115 bilhões de barris, atrás apenas da Arábia Saudita. Os planos são audaciosos, dignos da magnificência da antiga Babilônia, a poucos quilômetros de Bagdá. Da atual produção de 2,9 milhões de barris por dia, a meta é, em 2017, ultrapassar os sauditas e chegar a 12 milhões diários. Apesar de analistas duvidarem desse êxito, o país está de volta ao clube das “oleocracias”. Só não se sabe se as fatias do saboroso bolo do petróleo serão repartidas de maneira justa e eficaz entre todos os segmentos de uma população faminta por liberdade e dignidade. Tanta riqueza pode alavancar o renascimento do Iraque como potência. Ou tornar-se a maldição que fomenta a corrupção, aumenta a desigualdade e exorta ao conflito.

Simbolismo na presidência da Opep

Os lucros do petróleo renderam aos cofres iraquianos US$34,1 bilhões este ano. A redução da violência e o investimento na modernização de campos sucateados colocaram a produção em curva ascendente. E fizeram a Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep) eleger o Iraque para a presidência rotativa no ano de 2012 — um cargo simbólico, mas que reforça o interesse no despertar iraquiano após a ocupação americana — ainda que o país esteja fora do sistema de cotas do cartel. A meta é que seja readmitido plenamente quando alcançar o patamar de 3 milhões ou 4 milhões de barris diários, em meados de 2014.

Até lá, entram em cena as diferenças. O povo busca soberania e democracia. Os Estados Unidos deixam o país sonhando com estabilidade. Mas a prioridade do governo do xiita Nuri al-Maliki, chamado pelos inimigos de “marionete do Irã”, é outra.

— Primeiramente permanecer no poder — sentencia Michael Klare, especialista em segurança internacional do Hampshire College, nos EUA. — Maliki sofreu forte oposição de líderes potenciais no passado. Com o poder, vêm benefícios ao premier e seus aliados em contratos, patrocínios e privilégios variados. Além disso, ele representa a maioria xiita, que busca excluir os sunitas outrora poderosos de todas as posições de influência.

O alerta é corroborado por analistas e diplomatas que veem traços de autoritarismo no premier, cuja mão forte é sentida também pelas empresas petrolíferas atuando no país. Em 2009, uma licitação surpreendentemente transparente para a exploração de oito das maiores bacias de petróleo do Iraque foi a maior tentativa de abrir o setor desde a nacionalização em 1972. O leilão mostrou um Maliki irredutível, insistente em ditar as regras. Muitas regras. As petrolíferas cederam às imposições, e são pagas por barril produzido acima de uma certa quantidade — com o preço estipulado por Bagdá, que retém cerca de 90% dos lucros.

— Foi um leilão para contratos de serviços, não pelos desejados acordos de produção compartilhada. Maliki reluta em ceder controle a empresas estrangeiras — observa Klare.

O resultado foi que muitas companhias, sobretudo americanas, decidiram que os riscos envolvidos na operação eram bem maiores que as possibilidades de lucro, estimadas em “apenas” 15%. Formaram-se, então, consórcios reunindo países como Tailândia, China, França, Rússia, Reino Unido, Noruega e até Angola.

Disputas no governo Maliki sobre quem vai ocupar ministérios — e bem-remunerados postos de controladoria — também impedem a aprovação da Lei de Hidrocarbonetos para regulamentar e flexibilizar o setor. A ausência dessa legislação é outro foco de divergência local e alvo de muita pressão ocidental. Principalmente devido à lei liberal adotada pela semiautônoma região do Curdistão, no Norte do país, onde poços gigantescos vêm sendo descobertos. E para onde empresas como a Exxon já se deslocaram, atraídas por acordos flexíveis de produção compartilhada e, claro, lucros maiores.

— Está instaurada a tensão regional interna. Os curdos têm contratos milionários que Bagdá não reconhece, alegando que todo o petróleo deve ser regulado e comercializado pelo governo central — explica o pesquisador Steve LeVine, autor do blog “Oil and Glory”, da revista “Foreign Policy”.

Missão de frear o Irã e deter a al-Qaeda

Sob a disputa para ditar os ônus e bônus da indústria, emerge outro fator de instabilidade, diz LeVine:

— Árabes ligados ao regime do Sul vão brigar com os curdos do Norte pela renda da produção no Norte. E sunitas e xiitas no Sul vão brigar pela alocação dessa mesma renda no Sul.

Fora do âmbito econômico, o Iraque enfrenta outro inimigo que preocupa não só Bagdá, mas também os governos de Irã e EUA: o extremismo de milícias sunitas ligadas à rede al-Qaeda. Somente na semana passada, três bombas atingiram um oleoduto que liga poços no Sul do país a reservatórios na cidade de Basra. Mesmo com a morte de Osama bin Laden e movimentos islamistas nos países da Primavera Árabe provando que o caminho do voto é mais vantajoso que o das armas, o grupo ameaça a estabilidade — ciente de que pequenas ações podem ter grande impacto.

— É um grupo pequeno, mas ideológico, que quer dar alguma voz à minoria sunita, mas não tem apoio. A al-Qaeda reúne muitos marginais e mercenários. Hoje, a tática é manter a imagem. Um jogo de intimidação — especula Brian Fishman, especialista em al-Qaeda da New America Foundation.

Odiado por uns, Maliki também se vê cortejado por outros. Como o tradicional rival Irã — com quem Bagdá travou a mais sangrenta guerra moderna do Oriente Médio, com 400 mil mortes em oito anos. Os aiatolás apostam no elo sectário para ter influência no país vizinho através de clérigos como Moqtada al-Sadr e sua milícia, o Exército do Mahdi, hoje adormecido. No entanto, fatores como o crescimento da produção de petróleo iraquiana, a crise econômica que ameaça a demanda, o isolamento crescente do Irã e a democratização batendo à porta do mundo árabe fazem a balança de interesses oscilar rapidamente.

— O Iraque tem interesse em recuperar uma política externa independente e assertiva, mas, neste primeiro momento, isso dependerá da conjuntura interna — alerta Gregory Gause, da Universidade de Vermont, autor de “As Relações Exteriores no Golfo Pérsico”. — O fim da guerra é só o começo. E há muito petróleo ainda a ser descoberto no deserto iraquiano.