Título: A cara e o coração do teatro brasileiro
Autor:
Fonte: O Globo, 18/12/2011, Rio, p. 23

Sergio Britto encerra aos 88 anos uma vida de amor pelos palcos

SERGIO BRITTO com Fernanda Montenegro e Italo Rossi em “O marido vai à caça” (1971)

Sergio Britto voltou da praia num dia de janeiro de 1946 e, como quem toma uma decisão banal, pegou uma lâmina e cortou os pulsos no banheiro. Levado ao hospital, foi salvo. E só tempos depois teve capacidade de entender a angústia que o acometia: intensa e mal direcionada ansiedade de viver.

Das duas coisas que estudava então, não era na medicina que encontrava a satisfação de suas ânsias, mas no teatro — e na mesma época descobria a homossexualidade, sobre a qual não costumava se recusar a falar, embora tivesse encarnado diversos papéis de galã, por causa de seu tipo físico.

Agarrou-se ao teatro com tal paixão que só conseguiu largá-lo nos últimos meses por absoluta falta de condições de saúde. Dedicou-se tanto que, mesmo não tendo o brilho do amigo Italo Rossi (também morto neste ano), tornou-se um dos mais representativos atores brasileiros do século XX. Também se destacou como diretor e empreendedor.

Os primeiros passos no palco deste carioca nascido na Rua da Alfândega em 29 de junho de 1923 e crescido na Tijuca e em Vila Isabel foram no Teatro Universitário, onde atuou em “Romeu e Julieta”. Mas foi outra peça de Shakespeare que marcou seu início para valer: “Hamlet”, do Teatro do Estudante, estrelado por Sérgio Cardoso e que estreou em 6 de janeiro de 1948, quatro dias após sua formação como médico — profissão que não exerceria.

O sucesso do espetáculo resultou em outros, inclusive os do Teatro dos Doze, mas fundamental foi a ida para São Paulo, em 1950. Trabalhou nas companhias de Madalena Nicol, Maria Della Costa e no Teatro do Arena, no qual fez em 1953 a primeira encenação em que, como disse no livro de memórias “O teatro e eu”, se encontrou como ator: “Uma mulher e três palhaços”, de Marcel Achard, com direção de José Renato. Foi no grupo de Maria Della Costa que conheceu a amiga de quem estaria próximo para sempre: Fernanda Montenegro, sua parceira em “Com a pulga atrás da orelha”, de Feydeau, em 1955 — e, novamente, em 1960. Em São Paulo, os dois ainda atuariam juntos no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), então já ao lado de Italo Rossi.

Paralelamente aos palcos, eles passaram a atuar na TV em 1956, no programa “Grande Teatro Tupi”, em que peças eram representadas ao vivo. Pelas contas de Sergio, foram 386 peças em nove anos, a maioria adaptada por Manoel Carlos. Apesar dessa grande experiência, o ator não chegou a ter muito destaque na era de ouro das telenovelas. Integrou os elencos de, entre outras, “Escalada” (1975), “Anjo mau” (1976), “Paraíso” (1982) e “Pantanal” (1990).

Em 1959, de volta ao Rio, Sergio faria história ao lado de Italo, Fernanda e o marido, Fernando Torres, e Gianni Ratto com a companhia Teatro dos Sete. Da estreia com “O mambembe”, de Arthur Azevedo, no Municipal, até 1966, foram vários espetáculos marcantes, como “O beijo no asfalto” (1961), de Nelson Rodrigues.

Sucessos e experimentalismo

Sergio ainda faria sucesso com Fernanda e Italo nos anos seguintes, mas ele daria uma guinada rumo ao experimentalismo na década de 1970, em trabalhos como “Fim de jogo”, “Tango”, “Missa leiga” e “Autos sacramentales”. Sua renovação constante o levaria, na década seguinte, a ser dirigido duas vezes por Gerald Thomas (“Quatro vezes Beckett” e “Quartett”), e a sempre procurar novos encenadores, como Isabel Cavalcanti. Ela o dirigiu em “A Última Gravação de Krapp/Ato sem Palavras 1”, de Samuel Beckett, espetáculo solo que lhe rendeu vários prêmios em 2009, inclusive o Faz Diferença, do GLOBO. A carreira foi concluída com 106 peças, sendo 96 como ator.

O lado empreendedor de Sergio também era forte. Com os amigos Mimina Roveda e Paulo Mamede abriu em 1978 o Teatro dos Quatro, que produziria espetáculos de alta categoria como “Os veranistas”, “As lágrimas amargas de Petra von Kant” e “Assim é se lhe parece”. Na década de 1980, foi o primeiro responsável pela programação teatral do Centro Cultural Banco do Brasil, convidando os encenadores que despontavam. E, nos anos 1990, ocupou o palco do Teatro Delfin com musicais sobre a História brasileira.

À paixão pelo teatro somavam-se as paixões pela ópera, tendo dirigido várias, e pelo cinema, traduzida em suas estantes repletas de filmes. As reuniões com os amigos para assisti-los inspiraram Mauro Rasi a escrever a peça “O baile de máscaras”.

Sergio teve várias pneumonias ao longo da vida, mas sempre deixava os hospitais rumo aos teatros, para atuar e assistir. A internação iniciada em 14 de novembro, no entanto, foi a última. Ele morreu às 6h40m de ontem, no Copa D’Or, por insuficiência cardiorrespiratória.

Fernanda Montenegro esteve à tarde no velório, na Assembleia Legislativa do Rio. Ela fora na véspera ao hospital se despedir do amigo, que a chamara. O enterro será às 11h de hoje, no Cemitério do Caju. O governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes decretaram luto de três dias. Sobrinhos de Sergio Britto pretendem criar um centro cultural com seu acervo.

oglobo.com.br/cultura/xexeo