Título: Choque no topo do mundo
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 28/12/2011, Ciência, p. 24

Derretimento de geleiras nos Himalaias acelera e já ameaça comunidades

A MARGEM leste da geleira de Rongbuk, no Nepal, em dois momentos, em 1921 e em 2008: temperatura nos Himalaias sobe em ritmo mais rápido que na maior parte do mundo, forçando recuo cada vez maior do gelo

A GELEIRA de Kyetrak, próxima a Ngozumpa, em imagens de 1921 e 2009: vazantes de centenas de milhões de litros de água

Como todo montanhista, David Breashears sempre teve a atenção voltada para os cumes e não para os sopés. Há quatro anos, porém, um trabalho sobre os efeitos das mudanças climáticas nas geleiras do Himalaia resultou numa mistura de choque e epifania do qual o também fotógrafo e videomaker americano ainda não se recuperou: ao sobrepor uma fotografia tirada nos anos 20 por George Mallory, o lendário explorador inglês morto numa tentativa de escalar o Everest, com o panorama de 2007, quando Breashears deparou-se com muito menos gelo.

— Sempre pensei que as geleiras dos Himalaias eram indestrutíveis. Não estava preparado para presenciar uma perda de massa tão chocante ou mesmo de encontrar um lago numa das áreas que percorri. Senti-me extremamente culpado por ter demorado tanto tempo para me dar conta do que está acontecendo — confessa ele em entrevista ao GLOBO por telefone de Katmandu, capital do Nepal, onde se prepara para nova expedição.

Breashears agora tem como foco a documentação fotográfica das geleiras como parte do trabalho da GlacierWorks, ONG que fundou para ajudar os cientistas a melhor difundir a mensagem sobre os efeitos do aquecimento global. Percorrendo as rotas originalmente usada por alpinistas e fotógrafos célebres como Mallory, Breashers preparou uma exibição para a Royal Geographical Society, em Londres.

A preocupação de Breashers encontra eco em outros estudiosos da região. Segundo eles, o derretimento das geleiras do Himalaia já representa uma ameaça para as comunidades sherpa nas montanhas. Em Ngozumpa, aos pés do monte Cho Oyo — sexto maior do mundo, com 8.150 metros — um enorme lago está se formando com a água vinda do alto da cordilheira. O risco ainda não é iminente, mas os cientistas alertam que a grande massa de água um dia vai romper a barreira de rochas, invadindo o vale abaixo e varrendo as aldeias no seu caminho.

Gelo formou lago perigoso

A geleira de Ngozumpa não é das mais bonitas. Cheia de rochas, poeira e detritos vindos dos penhascos em sua volta, ela tem uma aparência suja. Isso, no entanto, ajuda na sua preservação. Diferentemente dos glaciares de águas cristalinas, a cobertura de rochas nestas geleiras “sujas” protege o gelo da radiação solar. O problema é que o aumento da temperatura global — que nos Himalaias acontece em ritmo bem mais acelerado do que na maior parte do mundo — aos poucos está removendo a capa protetora, levada pela água, em um processo que se auto-alimenta cada vez mais.

Em Ngozumpa, a água do derretimento das geleiras forma piscinas que enchem e esvaziam periodicamente por meio de uma série de canais sob o gelo. Toda essa água segue até um lago a 25 quilômetros do monte Cho Oyo, que pode alcançar seis quilômetros de comprimento por um quilômetro de largura e 100 metros de profundidade. Batizado Spillway, o lago precisa ser monitorado constantemente.

Uma das cientistas que faz este monitoramento é Ulyana Horodyskyj, da Universidade do Colorado, nos EUA. Ela já conseguiu observar a rapidez com que as piscinas de Ngozumpa enchem e esvaziam, flagrando uma delas perdendo 100 mil metros cúbicos de água (100 milhões de litros) em apenas dois dias e recuperando o volume nos cinco dias seguintes.

— Digamos que eu tivesse chegado ao local uma semana antes e uma semana depois que o lago apresentou a variação. Ia parecer que nada aconteceu, pois o nível dele estaria praticamente o mesmo — contou ela à BBC. — Mas minhas fotografias mostram que algo aconteceu e o equivalente a 40 piscinas olímpicas cheias foram mandadas geleira abaixo.

Para entender como estes lagos contribuem para a erosão da geleira de Ngozumpa, Ulyana instalou câmeras que registram automaticamente a paisagem abaixo dos penhascos. Ela acredita que os lagos, alguns muito pequenos e outros do tamanho de um campo de futebol, estão conectados como numa espécie de rede. Assim, enquanto um mais alto esvazia, outro mais abaixo enche.

Um dos que estão estudando este “encanamento” glacial é Doug Benn, da Universidade Central de Svalbard (UNIS), na Noruega. Ele tem escalado os canais escavados pela água dentro da geleira, que em alguns pontos se transformam em imensas cavernas.

— Sabe-se que as geleiras da região estão derretendo como resultado do aquecimento global, mas o que poucos se dão conta é que elas também estão sendo “comidas” por dentro — disse ele à BBC. — As geleiras estão parecendo cada vez mais com um queijo suíço, então tudo está acontecendo mais depressa do que se vê apenas observando sua superfície.