Título: Cristina, sem limites
Autor: Horta, Luiz Paulo
Fonte: O Globo, 25/12/2011, Opinião, p. 7

Reeleita presidente da Argentina, semanas atrás, com expressiva maioria, Cristina Kirchner aproveita o início de mandato para atacar os seus inimigos - reais ou imaginários. A ofensiva principal tem como alvo os meios de comunicação: através de todo tipo de medidas - inclusive o controle da venda de papel de imprensa -, ela pretende quebrar a espinha de grupos como o Clarín, que tem jornal e televisão, e que ousa assumir postura oposicionista.

Há uma razão, entre outras, para essa fúria vingativa: até as pedras do caminho sabem que 2012 será um ano difícil para o mundo inteiro, e para a Argentina em particular.

O país beneficiou-se, nos últimos anos, de um grande mercado comprador para as suas commodities - o que também aconteceu com o Brasil. Mas, no mundo inteiro, o poder de compra está encolhendo. E, se isso é ruim para o Brasil, é desastroso para a Argentina.

Por conta dos anos de bonança, a Casa Rosada praticou uma política populista que agora encontra os seus limites. Subsídios distribuídos a torto e a direito - gás, luz, transporte - precisam ser cortados, ou limitados, para atender a prementes necessidades de caixa.

Ainda mais grave é a política de avestruz que o Governo adotou em relação à inflação. Por seus institutos oficiais, o Governo falsifica os índices, e chega a processar quem tente ventilar os números verdadeiros. De uma inflação que já beira os 25% ao ano, o Governo só reconhece 10%. Nada mais é preciso para distorcer completamente os dados da economia.

Nesse momento, por exemplo, um dos poucos que ousam enfrentar a sra. Kirchner é o líder sindical Hugo Moyano, chefe dos caminhoneiros. É uma liderança gerada nas práticas mais arcaicas do velho peronismo, e, em condições normais, ele não seria obstáculo para Cristina. Mas, nesse momento, Moyano faz o papel surrealista de profeta da verdade dos preços. Ele não pode dizer aos seus liderados que engulam o cálculo oficial da inflação: é obrigado a defender 25%, ou mais, em qualquer negociação salarial. E por aí vai-se erodindo o que resta de confiabilidade no discurso oficialista.

Cristina Kirchner é certamente um fenômeno político. Depois da morte do marido, chegou a fingir que estava desgostosa da política, que poderia não se candidatar à reeleição. Fingimento ou não, de repente ela dá a volta por cima, aparece como a viúva inconsolável que vai à luta para resgatar os ideais do marido, e, ato contínuo, torna-se uma candidata imbatível, num país que cultiva carinhosamente os dramas.

A verdadeira tragédia, nisso tudo, é que o país é jogado num processo de que já se conhece o desfecho. Os Kirchner, marido e mulher, sabiam fazer política, à sua maneira. Mas vêm de um ambiente medíocre - a obscura província de Santa Cruz, na Patagônia, onde ainda se considera naturais os métodos mais antigos do caudilhismo.

É esse modelo que a atual presidente quer aplicar depressa, antes que a política ou a economia lhe peçam contas. A concentração de poder, num país que poderia aspirar a patamares mais altos de vida civilizada, adquire contornos quase grotescos, como se viu na cerimônia de posse, em que a faixa presidencial foi imposta à presidente reeleita pela sua própria filha.

É um caminho que não promete nada de bom - como se vê pela Venezuela do coronel Chávez. Um jornalista argentino chegou a dizer que é a arte de praticar uma política sem fusíveis.

Na política, quando as coisas começam a dar errado, uma solução tradicional é despedir o subordinado a quem se possam atribuir malfeitos. Mas, na Argentina de hoje, não há contrastes ou contrapesos para a ação da presidente - e assim, ela acaba sendo responsável por tudo.

A América Latina vai navegando entre modelos contrastantes. Aqui no Brasil, o presidente Lula foi salvo milagrosamente, por sua inteligência ou por seu faro político, da tentação de um terceiro mandato. Sua sucessora pratica um saudável ª low profile. Mas ainda não dá para dizer que estamos livres dos perigos do personalismo.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.