Título: ONGs discutem seu lugar em tempo de paz
Autor: Daflon, Rogério
Fonte: O Globo, 01/01/2012, Rio, p. 19

Rocinha tem 87 organizações não-governamentais, enquanto outras áreas com UPP só contam com uma

O CONJUNTO Chorando à toa: grupo formado na Escola de Música da Rocinha, uma das 87 ONGs do lugar

COSTURANDO IDEAIS: grupo que capacita costureiras no Morro Dona Marta em dificuldades financeiras

daflon@oglobo.com.br

O papel das organizações não governamentais (ONGs) está em plena remodelação nas comunidades pacificadas. As ONGs vêm sendo procuradas numa proporção bem maior pela população de favelas onde as armas não ficam mais à vista. Algumas áreas com Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), porém, não contam com presença tão forte do terceiro setor. Foi exatamente essa ausência que inspirou a ONG Tem Quem Queira a se instalar no Morro do Turano, onde a UPP foi inaugurada em setembro de 2010.

— As comunidades pacificadas da Tijuca e de Vila Isabel têm poucas ONGs. No Morro do Turano, somos a primeira a ter uma sede — disse Adriana Gryner, da Tem Quem Queira, que capacita e emprega pessoas na produção de peças de moda com lona reciclada.

Para UPP Social, é preciso melhorar distribuição

Presidente do Instituto Pereira Passos (IPP) e responsável pela UPP Social, o economista Ricardo Henriques diz que cabe à própria UPP Social induzir uma melhor distribuição dessas ONGs pelos territórios pacificados.

— Áreas, como o Batan, Salgueiro e Turano estão esvaziadas de sociedade civil. As ONGs podem fazer um trabalho complementar ao do poder público — diz o presidente do IPP.

A desproporção é mesmo gritante. Se no Morro do Turano há apenas uma ONG, um levantamento da Secretaria estadual da Casa Civil revela que a recém-pacificada Favela da Rocinha tem 87 organizações não governamentais, além de seis igrejas e duas associações de moradores. O contraste surge até entre a Rocinha e o Complexo do Alemão, no qual o levantamento da Casa Civil contou apenas dez ONGs, 11 associações de moradores, duas igrejas, duas capelas e duas associações religiosas.

— O Complexo do Alemão tem três grandes ONGs instaladas: o AfroReggae, a Cufa (Central Única de Favelas) e a Raízes em Movimento. Já a Rocinha tem bem mais ONGs e mais lideranças fortes e, com isso, mais canais de interface com governo do estado e prefeitura — afirmou Marcela Moreira, gerente do Escritório de Gerenciamento de Projetos do governo do estado.

Segundo o arquiteto Marat Troina — ex-coordenador do Canteiro Social do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) da Rocinha — a comunidade também é muito articulada para receber recursos internacionais.

— Após o programa de pacificação, as ONGs da Rocinha tiveram certa retração desses recursos de fora, que começaram a migrar para favelas pacificadas. Mas com a recente ocupação, a Rocinha deve ganhar mais ONGs e mais verbas — acredita o arquiteto.

Diretor da Escola de Música da Rocinha, Gilberto Figueiredo confirma as palavras do urbanista. Segundo ele, desde a ocupação da comunidade, os contados para receber investimentos do exterior aumentaram.

— Já fomos contactados por entidades dispostas a investir no nosso trabalho. Nossa escola já capacitou até 400 músicos em um ano. Atualmente, esse número caiu para 100. Agora é o momento de reverter essa situação — disse Gilberto, cuja escola, diz ele, já pôs vários músicos no mercado, como os integrantes do conjunto Chorando à toa.

Economista acredita em processo de decantação

Moradores da Rocinha que não quiseram se identificar, contudo, evidenciaram seu descontentamentos com algumas ONGs na comunidade.

— A Escola de Música da Rocinha faz um bom trabalho e forma mesmo muita gente para o mercado. Mas há muita picaretagem entre algumas ONGs daqui — disse um morador.

O economista Ricardo Henriques crê, no entanto, que a paz nessas áreas levará a um processo de decantação. Ele ressalta que a própria UPP Social já trabalha com 40 ONGs.

— ONGs que tinham relações escusas com o crime ou com políticos clientelistas não terão espaço nesse processo. A UPP Social já trabalha com um número razoável de ONGs que têm um trabalho consistente e sério nesses territórios. Queremos identificar outras que seguem essa linha — diz Henriques, ressaltando que as 40 ONGs com parceria com a UPP Social atuam, sobretudo, nas áreas de saúde, educação, cultura e empregabilidade.

Assessor-executivo do AfroReggae, Reginaldo Lima enfatiza que a questão da credibilidade é fundamental por um motivo histórico:

— Nas comunidades, a população procura as ONGs e não o poder público, e essa confiança precisa ser correspondida. Nosso trabalho no Alemão é bem anterior à pacificação. O AfroReggae tem 19 anos de existência e está inclusive em áreas sem UPP, como Parada de Lucas e Vigário Geral. As ONGs que construíram um trabalho sólido terão um papel cada vez mais importante — disse Reginaldo.

Ele acrescenta que, nas áreas pacificadas onde o AfroReggae está presente — Alemão, que está ocupada pelo Exército; e os morros do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho, pela UPP — a ONG tem sido bem mais visitada.

— As pessoas vêm para se inscrever no nosso programa de empregabilidade — disse Reginaldo, apontando um dos principais problemas entre os jovens dessas áreas.

Empregabilidade, por sinal, é o foco da ONG Costurando Ideais, do Morro Dona Marta, em Botafogo.

— Muitas costureiras do Santa Marta foram capacitadas por nós. Já recebemos recursos do Viva Rio e do Ibase. Mas hoje estamos em dificuldade — disse Maria de Lourdes, responsável pela ONG.

Diretor de entidade pede regulamentação

O biólogo Rafael Carvalho, da ONG Verdejar, do Alemão, diz que a disseminação de conhecimento é importante não só para pavimentar o acesso ao mercado de trabalho como para fortalecer a autoestima de jovens.

— Damos aulas sobre o território do Alemão, falando sobre sua geografia, sua história, seus problemas estruturais. As pessoas assim dão mais valor ao lugar onde moram — diz Rafael, nascido no Alemão.

Diretor da ONG Raízes em Movimento, Alan Brun, acredita que a população vai se sentir melhor ainda quando forem colocados alguns pingos nos “ is”. Brun sugere que o poder público faça uma regulamentação, a fim de separar o joio do trigo:

— É preciso que o poder público não feche parcerias com instituições vinculadas a partidos ou a políticos e defina o que diz respeito aos governos e o que diz respeito à sociedade civil. Cabe aos governos a implementação de políticas públicas sistêmicas. As ONGs, nesse caso, podem fazer ações que contribuam para o sucesso dessas políticas.