Título: Métodos mafiosos
Autor:
Fonte: O Globo, 22/01/2012, Opinião, p. 6

Já vão longe, perdidos numa época em que no Rio ainda se andava de bonde, o carnaval não era a expressão colorida de uma superindústria de entretenimento e o consumo de drogas não estava completamente ligado ao movimento de grandes quadrilhas de traficantes, os tempos em que o carioca associava o jogo do bicho apenas ao acervo folclórico da cidade. Figuras que até entraram para a crônica da cultura, como Natal da Portela, administravam seus pontos de aposta com métodos que, se afrontavam a lei, estavam bem distantes do manual dos grandes banqueiros de hoje, com base no qual é cometida toda sorte de violência para assegurar o domínio sobre uma atividade que desafia a polícia, as instituições e o estado baseado em leis para ordenar a sociedade.

Daquela época, supostamente "romântica", a contravenção fluminense guarda apenas a ligação, a exemplo de Natal, com o carnaval. Mas numa escala em que, além de o chamado "poder do bicho" exercer influência decisiva nas decisões tomadas pelas escolas, há fortes evidências de que as agremiações podem ter sido tomadas como reféns, pela cúpula do jogo, para operações impensáveis em outros tempos - lavagem de dinheiro da contravenção, por exemplo, como suspeita o Ministério Público fluminense.

O poder que os "banqueiros" do bicho demonstram de corromper autoridades, desafiar as instituições e de comprovadamente se mostrarem incompatíveis com regras ortodoxas de controle sobre suas atividades é um dos mais fortes argumentos contra a tese da legalização do jogo no país - e não só o jogo do bicho. Há evidências fortes, e em quantidade suficiente, que ligam a cúpula da contravenção do Rio a ações criminosas que nada têm de "românticas". Pelo contrário: investigações da Polícia Federal mostram que os grandes bicheiros fluminenses globalizaram e criminalizaram radicalmente seus "negócios". No primeiro caso, estendendo o império do azar à exploração do jogo além das fronteiras do país, com comprovadas atuações no Uruguai, na Argentina e no Equador - investimentos, segundo a PF, sustentados com dinheiro proveniente de bingos clandestinos. Logo, inegavelmente ilegais. No segundo caso, e talvez a mais preocupante faceta da atual maneira como os contraventores afrontam a lei, com indicações concretas de que bicheiros fluminenses se aliaram a grupos mafiosos internacionais para expandir seus "negócios", no caso o controle das máquinas caça-níqueis.

Todos estes são movimentos que deixam um rastro de violência e mortes, principalmente em razão das disputas dos "capos" pelo controle da jogatina, mas também com ameaças sobre autoridades.

Argumenta-se, em defesa da legalização do jogo, que essa é uma atividade aceita em outros países. O paradigma, neste caso, são os Estados Unidos, onde a indústria do jogo recolhe impostos e produz empregos. A realidade, no entanto, mostrou que, também neste caso, nem sempre o que é bom para os EUA pode ser aplicado no Brasil. A tentativa de legalizar os bingos no país, por exemplo, com a destinação para o esporte de parte da renda por eles recolhida, revelou-se desastrosa. Não se acabou com o poder dos grandes grupos de contraventores sobre o jogo, entre outras razões, porque, segundo a PF, não é possível exercer controle eficaz sobre as casas de jogos em todo o território.

O jogo no país é monopólio de grupos de criminosos que afrontam a lei. É ilusão achar que tal poder se rompe pelo simples ato de tentar submeter a controle estatal uma atividade contaminada pela violência, pela ilegalidade e pela corrupção em grande escala.