Título: Sobra verba, falta ação
Autor: Mariz, Renata; Couto, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 07/09/2009, Brasil, p. 5

Existem R$ 150 milhões destinados a programas de prevenção da doença e tratamento a soropositivos parados em contas de 483 secretarias de saúde municipais e estaduais. Até hoje não há punidos por ineficiência

Enquanto o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, tenta convencer o Congresso a aprovar a nova CPMF, agora com o nome de Contribuição Social para a Saúde (CSS), sobra nos cofres (1)de estados e municípios dinheiro federal que deveria ser usado no combate à Aids. Há pelo menos R$ 150 milhões parados em contas de 483 secretarias de saúde contempladas com repasses da União, como se a doença, embora com números estáveis de notificação nos últimos anos, não matasse quase mil pessoas a cada mês no Brasil. Nesse mesmo período, de 30 dias, 2.800 brasileiros, em média, descobrem que são soropositivos. Mesmo assim, a verba pública mofa nos meandros da burocracia e do descaso de governantes. Uma portaria do Ministério da Saúde determina a suspensão das transferências caso os recursos não sejam utilizados, mas nenhum beneficiado foi penalizado desde a criação da política de incentivo, em 2003.

Relatório mais recente da pasta, de junho de 2009, revela casos esdrúxulos da ociosidade na aplicação do dinheiro. Barueri, município de São Paulo, já recebeu R$ 1,3 milhão do Ministério da Saúde nos últimos seis anos, mas só gastou, nesse tempo todo, R$ 229 mil ¿ 7,5% do montante. Alagoinhas, na Bahia, é outro exemplo de má aplicação: dos R$ 125 mil recebidos em quase dois anos, investiu menos de R$ 20 mil. Poços de Caldas, em Minas Gerais, que recebeu R$ 1,1 milhão desde 2003, executou apenas 30% da verba. O ministério contabiliza como executados os valores efetivamente pagos. Montantes empenhados, portanto, não entram nessa conta. ¿Temos buscado trabalhar com cada estado para melhorar a capacidade de gestão desses recursos¿, afirma Mariângela Simão, diretora do Departamento de DST e Aids do Ministério da Saúde.

Em Poços de Caldas, de acordo com o secretário de Saúde do município, Júlio Balducci, a lentidão na aplicação da verba é culpa da gestão anterior. ¿Deve ter sido falta de tempo ou opção da administração passada¿, esquiva-se Balducci, que diz estar no cargo há apenas 50 dias. ¿Vamos usar parte desse recurso que está parado para locar um imóvel mais confortável para o tratamento dos soropositivos¿, destaca. Em Barueri, município com 260 mil habitantes, sendo 1,6 mil soropositivos, a coordenadora dos programas de saúde, Adriana Poladian, salienta que as ações na cidade ocorrem, muitas vezes, antes da execução das verbas, que em seis anos não passou de 7,5% do total. ¿Oferecemos teste rápido de diagnóstico para a população, temos convênios com ONGs, damos reforço alimentar às crianças soropositivas¿, enumera Adriana.

Mas não é só no âmbito municipal que a ineficiência reina. Embora mais equipadas no que diz respeito a maquinários e recursos humanos, as secretarias estaduais também dão maus exemplos de investimento dos recursos. O Rio de Janeiro, por exemplo, que responde por 13% dos casos notificados de Aids no país em 2007, última base de dados do Ministério da Saúde, gastou menos de 50% de toda a verba recebida do governo federal para prevenir e combater a doença. O coordenador do programa estadual de DST/Aids do Rio, Alexandre Chieppe, se adianta em afirmar que o gasto do dinheiro em caixa já esta definido, apesar da burocracia. ¿Dos R$ 9 milhões, R$ 5 milhões serão utilizados para compra de equipamentos para os dois hospitais da rede estadual que tem enfermarias com leitos para pacientes soropositivos¿, diz.

A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul também aparece no documento do Ministério da Saúde com uma execução pífia: 43% dos R$ 12,7 milhões já transferidos pela União. Em nota, o órgão gaúcho detalha a destinação do saldo de R$ 7 milhões, que serão distribuídos entre transferências para municípios, publicidade, repasse a ONGs e compra de medicamentos.

O Distrito Federal é um caso à parte no relatório do Ministério da Saúde porque transfere para uma conta do Banco Regional de Brasília (BRB) os repasses vindos da União e, dessa forma, aparece no documento com quase 100% de execução. Dados do Conselho de Saúde do DF, entretanto, mostram execução próxima de zero entre 2003 e 2008. A Secretaria de Saúde rebate a informação, alegando que os valores empenhados devem entrar na conta do montante executado. Pelos números repassados pelo órgão, referentes somente aos últimos cinco anos, os empenhos do orçamento no exercício vigente oscilam entre 29%, em 2005, e 100%, em 2009.

¿Estamos tentando dar velocidade a esses investimentos. Mas entre pensar em gastar e gastar, efetivamente, no serviço público levamos no mínimo 100 dias¿, pondera Fernando Antunes, secretário-adjunto de Gestão da Secretaria de Saúde do DF. A situação levou o Ministério Público do DF a pedir informações aos órgãos competentes. ¿O problema não é falta de recursos, mas sim de gestão. Mesmo com o governo federal oferecendo o coquetel, o pouco que fica para os estados fazerem não é realizado a contento¿, lamenta Cátia Vergara, promotora de justiça de defesa da saúde.

1 - Transferências Desde 2003, o Ministério da Saúde repassa, automaticamente, do Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais e municipais de Saúde, recursos para serem usados na prevenção e combate à Aids. Cada ente da federação beneficiado tem de elaborar, anualmente, um Plano de Ações e Metas (PAM) detalhando os investimentos. Ao longo dos seis anos da política de incentivo, a pasta já repassou R$ 660 milhões, dos quais 23% não foram executados.

Repasses mantidos

Em vigor desde 2003, a portaria 2313/02 prevê que o município ou estado receptor dos recursos federais destinados ao combate a Aids que não movimentar o dinheiro por até seis meses pode ter as verbas suspensas pelo Ministério da Saúde. Até hoje, mesmo com o descumprimento da norma, o Departamento de DST e Aids não cancelou nenhum repasse, cujo valor mínimo anual é de R$ 75 mil. ¿A gente tenta acompanhar de perto para melhorar a execução nos locais mais problemáticos. Boa parte dos recursos que vemos hoje se acumularam nos dois primeiros anos da política, quando as secretarias tinham dificuldade de transferir às organizações da sociedade civil. O Paraná, por exemplo, que lidera administrativamente os editais para liberação de recursos a ONGs ainda mantém grande valor em caixa¿, ameniza Mariângela Simão, diretora do Departamento de DST e Aids.

Para melhorar a qualificação da governança dos recursos aplicados no combate à Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis, Mariângela anuncia a assinatura do acordo Aids IV, no valor total de US$ 200 milhões, sendo US$ 133 milhões de contrapartida do Tesouro Nacional e US$ 67 milhões emprestados pelo Banco Mundial. ¿O objetivo é melhorar a capacidade de gestão, pois essa é uma das grandes cobranças do Sistema Único de Saúde (SUS)¿, diz. Válido por quatro anos, o compromisso foi iniciado em 1994, quando o Banco Mundial emprestou US$ 160 milhões e a participação do orçamento da União ficou em US$ 40 milhões. (RC e RM)