Título: Na crise, perplexidade entre mercado e Estado
Autor: Scofield Jr., Gilberto
Fonte: O Globo, 29/01/2012, Economia, p. 50

Desde que nova turbulência global pôs em xeque capitalismo liberal, não há consenso para lidar com nova realidade

SÃO PAULO. Quando, a partir da década de 80, as reformas econômicas na China, a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética sepultaram a viabilidade das economias prósperas de esquerda, muitos historiadores e economistas decretaram a vitória do capitalismo como o único sistema capaz de conciliar riqueza e democracia. Essa nova ordem foi chamada pelo historiador americano Francis Fukuyama de "o fim da História". Trinta anos depois, com a crise econômica deflagrada em 2008 nos Estados Unidos, que arrastou a zona do euro, foi a vez de o capitalismo liberal ser bombardeado como incapaz de trazer justiça e inclusão social.

Desde que a crise ceifou bilhões de dólares em riqueza e milhões de empregos em todo o mundo, não há consenso sobre como lidar com essa nova realidade, em que nem a mão invisível do mercado nem o Estado provedor parecem capazes de pôr fim à injustiça social e às tiranias políticas. De um lado, fala-se que a saída da crise inclui aumentar a regulação e fiscalização por parte dos governos, ampliar os investimentos públicos e reforçar a rede de proteção social. Do outro, pede-se que os Estados gastem menos e poupem mais, que sistemas de bem-estar social sejam reduzidos e que estatais sejam privatizadas.

Rogoff: "Será o capitalismo vítima de seu próprio sucesso?"

Das reuniões do Fórum Econômico Mundial, em Davos, a universidades de todo o mundo, o futuro do capitalismo como o conhecemos parece estar em uma encruzilhada. O próprio Fukuyama - no artigo "O choque de ideias", publicado na revista "Foreign Affairs", do Council of Foreign Relations - admite que o capitalismo globalizado e ultraliberal das últimas décadas foi danoso, encolhendo a classe média nos países industrializados, aumentando o abismo entre ricos e pobres e ameaçando a própria democracia.

Em sua penúltima edição, a revista britânica "The Economist" analisou o conceito de capitalismo de Estado, executado em China, Rússia e Brasil. Neste, a economia tem no Estado um de seus principais atores, ainda que competitividade, produtividade e livre iniciativa sejam os principais motores. O economista de Harvard e prêmio Nobel Kenneth Rogoff, em recente ensaio ("O capitalismo moderno é sustentável?"), garante que todas as formas de capitalismo são transitórias e que o sistema econômico ideal não é o ultraliberalismo americano, o bem-estar social europeu ou o capitalismo de Estado dos países emergentes.

"Será o capitalismo uma vítima de seu próprio sucesso na criação de riqueza em massa? Até agora, apesar do modismo em torno do seu suposto fim, a possibilidade parece remota. Ainda assim, à medida que a poluição, a instabilidade financeira, os problemas na saúde pública e a desigualdade continuam a crescer, e os sistemas políticos permanecem paralisados, o futuro do capitalismo pode não parecer tão seguro daqui a algumas décadas como parece agora", afirmou Rogoff.

- Mesmo durante o laissez faire liberal, as intervenções estatais nas economias nunca deixaram de acontecer. Os bancos centrais, por exemplo, são intervenções do Estado na economia - diz Ilan Goldfajn, economista-chefe do Itaú Unibanco e ex-diretor de Política Econômica do BC. - A confusão atual deriva da perda de confiança das pessoas, especialmente nos EUA e Europa, na capacidade de autorregulação dos mercados. O que se percebe hoje é a defesa do capitalismo com o Estado mais presente.

A perplexidade diante de sugestões de saída para a crise aparentemente antagônicas, diz a economista Eliana Cardoso, da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), ex-Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), ocorre porque a crise atingiu, de forma diferente, países com sistemas econômicos em estágios diversificados.

- Quem usa a expressão "fim do capitalismo da forma como o conhecemos" talvez se refira a fenômenos que coincidiram recentemente. Como o fim do período de forte expansão, que começou na década de 90 e durou até 2008; o fim do dogmatismo neoliberal, que cercou a liberalização exagerada dos mercados financeiros no mesmo período; a importância crescente da China no cenário internacional; e a consciência de que existe um processo de transição de riqueza e poder entre as nações do globo - explica Eliana.

Para professor, emergentes têm "megakeynesianismo"

Marcos Troyjo, diretor do BricLab da Universidade de Columbia e professor do Ibmec, cita o filósofo comunista italiano Antonio Gramsci para definir o atual momento de perplexidade econômica. Em 1929, Gramsci descreveu a ebulição política do pós-guerra e da Grande Depressão como um tempo em que "o velho morre e o novo não pode nascer". Para Troyjo, a própria ideia de prosperidade ocidental está em jogo:

- Nos EUA, houve um descolamento da ganância do setor financeiro do resto da sociedade, que é muito criadora e inovadora, ainda que irresponsável com dinheiro. Na Europa, a crise da dívida soberana atingiu com mais força os países que não são mais produtivos. Essa ideia de prosperidade a que todos almejavam foi atingida em cheio. Nos emergentes e países periféricos não há sequer capitalismo desenvolvido. Há um megakeynesianismo, ou seja, uma superênfase em regulação e investimento do Estado. São perfis econômicos diferentes que embaralham as soluções.

O professor do Insper Sérgio Lazzarini, que com o professor de Harvard Aldo Musacchio elaborou o estudo "Leviatã como acionista minoritário", citado pela "Economist", vê exagero nas previsões do fim do capitalismo e lembra que a economia funciona em ciclos:

- Apesar da gritaria antiprivatização da esquerda brasileira, o Estado manteve controle direto e indireto sobre muitas das empresas privatizadas, e até hoje é um dos principais atores econômicos no Brasil. Então o que se vê é que a crise pegou países em estágios diferentes de capitalismo fora do eixo anglo-saxão. Além disso, o leme do crescimento vem desde 2003 se deslocando dos países desenvolvidos para os Brics. Então não é sem razão que vivemos tempos confusos.