Título: Tijolos e negligência aparentes
Autor: Breves, Lívia
Fonte: O Globo, 29/01/2012, Rio, p. 23

No Centro do Rio, prédio de 12 andares, inacabado, está habitado por 75 famílias

Lívia Breves, Luiz Ernesto Magalhães e Selma Schmidt

Em pleno Centro do Rio e vizinho à moderna sede do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), um prédio de 12 andares, sem emboço externo, se destaca na paisagem com seus tijolos aparentes. Lá se vão pelo menos dez anos desde que o esqueleto foi ocupado e dividido em apartamentos que, depois, foram vendidos. Localizada na Rua do Resende 24, com o passar do tempo a construção ganhou janelas de alumínio e até aparelhos de ar condicionado. Para o engenheiro Antonio Eulálio Pedrosa, do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RJ) e especialista em pontes e grandes estruturas, esse edifício é um retrato da falta de uma política urbana na cidade que inclua a fiscalização.

- Sem o emboço, o concreto fica exposto às intempéries, à atmosfera agressiva e à maresia. Com isso, ao longo dos anos, a armadura da estrutura pode ser danificada - alerta Eulálio, que tem pós-graduação em patologia das estruturas. - O anexo inacabado do Hospital Universitário do Fundão é um exemplo do que pode acontecer se o concreto ficar desprotegido. Os seus pilares não tinham revestimento. Demorou 40 anos, mas o prédio teve que ser demolido.

A preocupação de especialistas com as condições das edificações da cidade cresceu com o desabamento do Edifício Liberdade, que levou abaixo dois outros prédios do Centro, na última quarta-feira. As causas do acidente ainda estão sendo investigada.

Embora não disponha de elementos para fazer uma análise estrutural do prédio da Rua do Resende, o vice-presidente do Clube de Engenharia, Manoel Lapa, ressalta que a aparência de degradação da construção é um sinal de que não existe fiscalização preventiva.

- A verdade é que a prefeitura só dá a licença para construir e, depois, não há acompanhamento do que é edificado. No caso dos imóveis com habite-se, a fiscalização se encerra quando o documento é concedido. Na comissão que criamos no Clube de Engenharia, após o desabamento dos três prédios da Cinelândia, estamos pensando em propor ao Legislativo que seja criada uma lei obrigando os condomínios a fazerem vistorias periódicas na estrutura dos prédios. A ideia é que esses laudos técnicos sejam encaminhados à prefeitura - afirma Lapa.

O presidente do Crea, Agostinho Guerreiro, também defende a criação de uma legislação que exija dos condomínios a apresentação de laudos periódicos - a cada cinco anos, pelo menos, como acontece em Nova York - sobre a integridade de prédios com 30 anos ou mais.

Moradores garantem que pagam IPTU

Na frente do edifício da Rua do Resende foi construído um muro que tem até portão. No térreo, a área que seria a garagem sempre fica alagada quando chove. Ainda nesse andar, as portas dos elevadores - que funcionam - estão trancadas. Um morador do segundo pavimento, que se identificou apenas como Romário, conta que originalmente no prédio da Rua do Resende funcionaria um hotel:

- Mas o dono morreu. Como nenhum herdeiro se interessou, o pessoal que trabalhava na obra ocupou e terminou a construção por dentro. Não foi invasão. Com o passar do tempo, os apartamentos foram sendo vendidos. Somos 75 famílias de moradores.

O prédio tem luz e água. Segundo Romário, os relógios e hidrômetros instalados pelas concessionárias mostram que não há "gatos". Nos fundos do primeiro e do segundo andares, os apartamentos são de sala e dois quartos. Os demais têm quarto e sala.

- Não devemos nada a ninguém. Nós pagamos até IPTU. E temos projeto para emboçar o prédio - diz o morador.

Embora o imóvel não conste do Registro Geral de Imóveis nem tenha habite-se, Romário diz que a compra e venda do apartamento foi registrada em cartório. Ele pagou R$25 mil pelo dois quartos. Hoje, conta, o imóvel vale R$80 mil.

Um outro morador, que não se identificou, assegura a integridade do prédio:

- Os moradores se cotizaram e contrataram uma arquiteta que fez a planta e uma avaliação. Não há risco.

Em meio às investigações sobre o que causou os desabamentos no Centro um outro fato chama a atenção. A prefeitura e o Crea não trabalham de forma articulada para combater irregularidades. Os fiscais da Secretaria municipal de Urbanismo e agentes da Defesa Civil não têm por regra informar ao Crea sobre a existência de obras irregulares. O Crea, por sua vez, só exige que um profissional se responsabilize pelo projeto de uma obra, por meio da chamada Anotação de Responsabilidade Técnica (ART).

- A gente informa ao Crea em casos expecionais. Isso não é uma regra. Até porque, se uma obra é irregular, cabe à prefeitura embargar e multar o responsável. Não cabe ao fiscal tentar identificar o engenheiro responsável, até porque muitas dessas obras nem têm acompanhamento de mão de obra especializada - diz o secretário municipal de Urbanismo, Sérgio Dias.

Agostinho Guerreiro, por sua vez, argumenta que o Crea é um órgão de fiscalização de classe. Ele sugere que seja feito um convênio com o município para a troca de informações:

- O Crea não tem o poder de fiscalizar obras. o poder de polícia para verificar se uma obra é ou não irregular é sempre da prefeitura.

Em tese, um engenheiro pode emitir uma ART, mas não regularizar a obra na prefeitura. Isso porque o formulário padrão de ART adotado em todo país não tem qualquer lacuna para o responsável pelo projeto declarar que cumpre a legislação urbanística vigente. A Secretaria de Urbanismo, por sua vez, só emite a licença com a apresentação das ARTs:

- Varios processos caem em exigência por este motivo - diz Sérgio Dias.

"Esqueleto" também em Copacabana

Imóveis refletem descuido

Outro prédio apenas no "esqueleto", localizado dentro do Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio (Iaserj), na Praça da Cruz Vermelha, chama a atenção pelo descaso. Nos onze andares da construção, só o térreo é ocupado: entre suas paredes de tijolo aparente funciona uma ala improvisada da administração do instituto.

A comerciante Maria Mariana, 62 anos, trabalha há 19 anos num bar em frente à construção, na Rua Conselheiro Josino, e afirma nunca ter visto qualquer movimentação para o término da obra ali.

- Além de ser um desperdício de espaço, atrai ratos. Moradores de rua e, à noite, usuários de drogas invadem o prédio - comenta.

Em Copacabana, na Rua Xavier da Silveira 112, uma placa pregada na frente de um enorme prédio "envelopado" por uma rede preta revela que a construção do esqueleto começou em 1990. A data final, espera-se, será julho. Há dois anos, as intervenções foram retomada por uma nova equipe. Setenta pedreiros trabalham para finalizar a construção, que será um hotel de 18 andares, 305 quartos e restaurante.

Morador de um apartamento na mesma rua, o dentista Amyr Nadruz, conta que, desde que se mudou para lá, há 18 anos, só viu movimentação de obra recentemente.

- Fiquei apreensivo com o enorme prédio inacabado durante esses anos de abandono - reclama Amyr.