Título: Favoritismo confirmado
Autor: Fleck, Isabel; Sabadini, Tatiana
Fonte: Correio Braziliense, 08/09/2009, Mundo, p. 18

Lula recebe o colega Nicolas Sarkozy e anuncia negociações diretas para a compra de 36 caças franceses Rafale

Os dois presidentes após o encontro ampliado da tarde de ontem no Palácio da Alvorada: afinidades políticas e pessoais abrem caminho para acordos na casa dos bilhões de euros

A decisão foi tomada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e parece ter surpreendido até os integrantes do governo mais interessados no assunto. Por ocasião da visita do colega francês, Nicolas Sarkozy, Lula anunciou ontem que o Brasil iniciará negociações para a compra de 36 caças Rafale, da empresa Dassault, que disputa com a norte-americana Boeing e a sueca Saab a concorrência F-X2 da Força Aérea Brasileira (FAB). No início da tarde, o próprio presidente admitiu que ainda não tinha tido tempo de conversar com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, sobre a ¿profundidade¿ da decisão tomada na noite anterior. O comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, chegou a afirmar a jornalistas, antes da entrevista coletiva de Lula e Sarkozy, que ainda havia ¿muito a conversar¿.

As informações desencontradas e a ausência de confirmação sobre o fim da concorrência, com a escolha do Rafale, expuseram as dificuldades de comunicação dentro do próprio governo. ¿O que foi decidido é o que está no comunicado (conjunto) ¿ que o Brasil vai entrar em negociações com o GIE para a aquisição de 36 Rafales¿, disse Lula. Após a coletiva, o chanceler Celso Amorim tentou esclarecer: ¿Não há um contrato assinado. O que há é uma decisão de negociar com um dos fornecedores, e não há a mesma decisão com os outros dois¿, esclareceu.

A escolha, segundo o presidente, foi definida pela ¿amplitude das transferências de tecnologia propostas e das garantias oferecidas¿ pela parte francesa. ¿O aspecto central da oferta francesa, diante das outras, é a efetiva transferência de tecnologia. Não só dar acesso a conhecimento, mas permitir que tenhamos também livre acesso desse conhecimento para outras operações¿, afirmou Amorim. As outras concorrentes, que ofereciam o F-18 Super Hornet (Boeing) e o Gripen (Saab), garantiram que suas propostas também contemplavam transferência de tecnologia, mas parecem não ter convencido o governo brasileiro. Procuradas pelo Correio, ambas as empresas afirmaram que só vão comentar o assunto depois de um comunicado oficial que dê a concorrência por encerrada.

O que também parece ter motivado a decisão foi a possibilidade de o Brasil, que participará da produção dos caças por meio da Embraer, vender aeronaves a vizinhos latino-americanos, no futuro. ¿O que estamos fazendo não é uma simples parceria comercial. A França não quer só vender ao Brasil, e o Brasil não quer só vender à França. Queremos pensar juntos, criar juntos, construir juntos, e, se for possível, vender juntos¿, declarou Lula, que teve a confirmação de Sarkozy. No mesmo comunicado, o presidente francês assume a ¿intenção¿ de adquirir 10 unidades do avião de transporte militar KC-390, em desenvolvimento pela Embraer, que substituiria os norte-americanos C-130 da frota francesa.

O valor total da compra dos Rafale é estimada em até R$ 13 bilhões. Somados aos R$ 22 bilhões destinados à aquisição dos 50 helicópteros e cinco submarinos franceses, eles representam a maior compra militar do Brasil nos últimos anos.

Decisão política Para o especialista Salvador Ghelfi Raza, professor da Universidade de Defesa dos Estados Unidos, não há dúvidas de que a escolha de negociar o Rafale foi puramente política. ¿A grande vantagem é que ele veio num pacote francês. O Rafale é mais caro e vai criar dependência da França no aprestamento operacional, de início¿, opina o especialista. Apesar de considerar a escolha precipitada, Salvador acredita que se o Brasil tiver planejamento, o negócio será vantajoso. ¿Se formos espertos, trazemos o caça para cá e o melhoramos. Se a Embraer tiver condições de fazer isso, o jogo vira. Mas se a decisão do presidente for política, nós vamos ter de conviver com o esse arroubo do 7 de setembro de 2009 pelos próximos 30 anos.¿

Moqueca capixaba com feijão tropeiro

» O único desejo de Nicolas Sarkozy que o amigo Lula não conseguiu cumprir foi o de provar um bom churrasco. A ¿reclamação¿, feita pelo francês em entrevista coletiva no Palácio da Alvorada, foi respondida logo. O anfitrião culpou a ¿churrasqueira moderna¿ do Palácio pela gafe. Segundo o presidente, a carne já estava na brasa, à espera do visitante, na noite de domingo, quando os vidros temperados que contornam a churrasqueira não suportaram o calor. ¿Não poderia oferecer o churrasco com vidro¿, justificou-se Lula. Por sorte, a primeira-dama, Marisa Letícia, tinha pedido à cozinha do palácio que preparasse também uma moqueca capixaba, com medo de que a chuva estragasse o churrasco. Sarkozy provou um prato bem brasileiro, mas com uma combinação improvável: o feijão tropeiro que acompanharia o churrasco. ¿Fiquei muito contente, porque o presidente Sarkozy gostou muito do feijão tropeiro. Significa que ele já está se sentindo em casa¿, arrematou Lula.

Pacote bilionário

Contratos fechados na área

Helicópteros 50 unidades do modelo francês EC-725, para transporte de tropa, serão desenvolvidas e produzidas conjuntamente.

Submarinos Um estaleiro no Brasil construirá, com apoio técnico francês, quatro embarcações da classe Scorpène, com propulsão convencional; também será instalada uma base de apoio para os submarinos.

A França prestará cooperação tecnológica para a construção do primeiro submarino brasileiro com propulsão nuclear.

Valor total: RS$ 22,5 bilhões

Negociações em andamento

Aviões O governo brasileiro anunciou a intenção de abrir negociações com a francesa Dassault para adquirir 36 caças Rafale

A França manifestou a intenção de comprar da Embraer 10 aparelhos de transporte militar do modelo KC-390

O caça desencantou

Não por acaso, um jornalista francês perguntou ao presidente Nicolas Sarkozy, na coletiva conjunta concedida no Alvorada, se está quebrada a ¿maldição do Rafale¿. O caça produzido pelo consórcio Dassault Aviation foi concebido nos anos 1980 para ser o primeiro avião de combate francês polivalente e substituir, em longo prazo, sete aparelhos diferentes, entre eles o Mirage 2000 e o Super Étendard. Os primeiros protótipos do Rafale voaram em 1991, e o primeiro avião destinado à força aérea francesa saiu da fábrica em dezembro de 1998. Até hoje, porém, nenhum outro país adquiriu o aparelho.

A Marinha francesa é equipada com o Rafale desde junho de 2004, e a primeira unidade operacional da Força Aérea foi constituída em junho de 2006. O preço de cada aparelho é avaliado em cerca de 50 milhões de euros. O custo orçamentário unitário para o Estado francês chega a 96 milhões de euros.

Capaz de voar a Mach 1.8 ¿ ou seja, 1,8 vez a velocidade do som ¿, o Rafale é fabricado pela Dassault, pelo gigante eletrônico Thales e pelo fabricante de motores aeronáuticos e espaciais Snecma. Mais de 1.500 empresas francesas estão envolvidas no programa. Construído com materiais compostos, é considerado ¿discreto¿, com um ¿sinal radar¿ fraco. Vários Rafale de última geração são utilizados para missões no Afeganistão, onde depejam bombas americanas guiadas a laser de 250kg.

Deu no

Le Figaro Contrato histórico

¿Brasil decide comprar 36 Rafale¿, era até a noite de ontem a manchete da edição online do diário conservador, que fez questão de esclarecer que pertence ao grupo Dassault ¿ o mesmo que produz o caça. ¿O presidente Lula precipitou sua escolha da oferta francesa `tendo em conta a amplitude da transferência de tecnologia proposta¿, inclusive a possibilidade de fabricar os aviões no Brasil¿, diz a reportagem do enviado do jornal a Brasília. O texto afirma que terá início ¿uma negociação exclusiva¿ sobre o contrato que ¿concretiza a parceria estratégica firmada pelos dois países em 2006¿.

Libération Champanhe aberto

¿As comissões francesa e brasileira que negociam notadamente no âmbito das ofertas para fornecimento de aviões de caça ao Brasil podem estourar o champanhe¿, começa a reportagem do diário esquerdista, que dá como praticamente vendida pelo francês Rafale a disputa por um contrato ¿de no mínimo 5 bilhões de euros¿. O Libé, como é chamado pelos leitores, atribui o sucesso, ao menos em parte, ¿aos laços privilegiados cultivados entre os presidentes Lula e Sarkozy¿.

Le Monde Primeiro cliente

O jornal, considerado próximo ao Partido Socialista, é mais prudente em sua cobertura, mas também ressalta que, se confirmado o negócio, será a primeira venda externa do Rafale desde que ele saiu da linha de montagem da Dassault, há 10 anos. ¿A partir do momento em que o chefe de Estado brasileiro anuncia que decidiu entrar em negociações para comprar os Rafale, estamos na posição de acreditar que o Brasil efetivamente os comprará¿, diz à reportagem o diretor de Relações Internacionais do grupo, Yves Robins. Na avaliação do Monde, o primeiro contrato pode gerar 6 mil empregos em um setor duramente atingido pela crise.