Título: O que ensinam as tragédias
Autor:
Fonte: O Globo, 12/02/2012, Opinião, p. 7
O bom de sermos contemporâneos - este tempo cheio de possibilidades - é que podemos ser simultaneamente gregos e modernos, e talvez escolher a melhor mistura para refletir sobre os acontecimentos desastrosos que abalaram a Região Serrana do Rio em janeiro de 2011, e que até hoje não encontraram solução, prolongando seu rastro de destruição. Acontecimentos que deixam de ser apenas catastróficos, entre outros que abalaram o Rio recentemente, para se tornarem trágicos, ao reafirmarem o abandono a que ainda estão submetidas essas populações, assim como a falta de fiscalização na cidade do Rio de Janeiro.
Optemos por ser mais gregos agora, referenciando-nos aos criadores da democracia que aprendiam com suas tragédias. Não apenas com as naturais, mas com aquelas em que os poetas trágicos ensinavam o povo de Atenas, em sua democracia incipiente, a importância dos afetos para promover a interação dos cidadãos entre si, construindo a política da cidade. Eles eram fundamentalmente os afetos de piedade pelo outro que sofre, morre ou se arruína, e o de terror que tal tragédia pudesse se abater sobre si.
Em nossa democracia que se consolida, mas que ainda vive dias de vergonha, é vital levar em conta os afetos públicos de indignação, desespero, piedade e perplexidade que brotam não só das experiências diretas de morte, desaparecimento, desabrigo, perdas materiais que significaram vidas inteiras de construção, como também das experiências indiretas conhecidas através da mídia.
Lembro aqui o vínculo cultural, político e estruturante entre sofrimento (pathos), pensamento e ação, parte inalienável do saber trágico universal nas origens da democracia. É precisamente este vínculo indissolúvel que não pode deixar de ser reconhecido por nossos governantes, norteando suas ações sociais reconstrutoras com a maior urgência, sob pena de se descomprometerem com um pensamento político vivo capaz de levá-los a uma real representação do povo que os elegeu, e para a qual são indispensáveis a ética e a vontade política que animam o verdadeiro espírito público.
Ao interpelar nossos governantes a propósito de nossas tragédias brasileiras, que são a corrupção e o conformismo no cerne da administração de um país rico, tragédia revisitada em janeiros negros como esse, destaco a importância dos recursos humanos de alto nível nos ditos pontos de apoio da Região Serrana, que se apresentam depauperados para emergências como essas. É um absurdo, uma desfaçatez, oferecer escolas, igrejas, e outras construções, muitas vezes situadas em lugares de risco, como locais capazes de receber "desalojados e desabrigados" - os nossos sem-teto circunstanciais que vão se tornando crônicos. São patéticas as sirenes que não levam a lugar algum, literalmente, colocando sobreviventes ou pessoas em locais de risco diante do dilema de saber-se em risco e ao mesmo tempo temer abandonar seus lares destruídos, por falta de abrigo confiável.
Seria importante recusar qualquer tipo de criminalização, sempre possível, pois os desabrigados ocuparam encostas e territórios que nunca foram desautorizados de fato, e o fizeram por conta de um capitalismo descentrado de seu genuíno propósito na democracia, que é a geração da riqueza para todos, fazendo-os recuar de lugares mais seguros e mais propícios à existência.
Penso com emoção nas iniciativas da sociedade civil, especialmente a desenvolvida por um projeto universitário de extensão, que tem procurado levar a leitura e a literatura até estas populações, como um acontecimento transformador de suas vidas. Neste contexto, a palavra literária atua como operadora na abertura de novos circuitos subjetivos, atualizando a linguagem como morada primordial do homem, tornando-se abrigo para o ser desabrigado. Desabrigado, inclusive, pela própria linguagem, paradoxalmente fonte de equívocos e de beleza, ao superar o terror. Afirmar a literatura como dom incondicional da linguagem, é torná-la território comum, para todos, pois é na abundância que se resolvem os grandes problemas, e não na angústia e no abandono.
GLAUCIA DUNLEY é psicanalista e escritora. E-mail: glauciadunley@terra.com.br